Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Implode mais uma revolução traída

Vão esperar que a Nicarágua vire uma nova Venezuela, quando já não se pode fazer mais nada?

O levante popular em curso na Nicarágua, retratado nesta Folha, com o brilho habitual, por Sylvia Colombo na sexta-feira (11), está fora do radar dos países latino-americanos. Vão esperar que vire uma nova Venezuela, quando já não se pode fazer mais nada?

Manifestantes usam instrumento de fabricação caseira para atirar fogos durante protesto contra o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, em Manágua
Manifestantes usam instrumento de fabricação caseira para atirar fogos durante protesto contra o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, em Manágua - Oswaldo Rivas - 9.mai.18/Reuters

O que está acontecendo na Nicarágua? "Rompeu-se o silêncio e, acima de tudo, acabou o medo", resume Sérgio Ramírez, notável escritor nicaraguense (acaba de receber o Prêmio Cervantes concedido pela Espanha) e que conhece o regime por dentro. Foi membro da Junta de Reconstrução Nacional, que assumiu o poder quando o sandinismo derrubou a ditadura dos Somoza, em 1979.

Ramírez logo se desencantou com Daniel Ortega, que se transformou rapidamente em uma espécie de reencarnação de Somoza. Pelo menos é o que gritam nas ruas os estudantes que são os principais agentes do levante: "Ortega y Somoza son la misma cosa".

De fato, na Nicarágua sandinista (na verdade, orteguista), estabeleceu-se um pacto entre Ortega, quando voltou ao poder em 2007, e a cúpula do empresariado, à qual ofereceu liberdade para fazer negócios (legais ou ilegais), desde que não se intrometesse no controle do poder --a cargo de Ortega e de sua mulher, a hoje vice-presidente Rosario Murillo.

Não importava que o sandinismo nascera como grupo revolucionário e de esquerda e que a cúpula empresarial era conservadora e, na maior parte, apoiara o somozismo. Na prática, compuseram uma espécie de cogoverno: as leis econômicas e trabalhistas, as medidas sobre comércio, a banca e as finanças eram formuladas de comum acordo entre o governo e o Cosep (Conselho Superior da Empresa Privada).

Só depois de se entenderem, a legislação era encaminhada para a Assembleia Nacional, sob controle do orteguismo, ou implementadas por decreto.

Paralelamente, como na Venezuela, Ortega foi tomando conta de todos os instrumentos do Estado, a Justiça, inclusive a eleitoral, a Assembleia Nacional, a polícia, o exército, até as universidades. Os partidos políticos também foram cooptados ou simplesmente colocados na ilegalidade.

Para amansar a imensa massa de pobres, Ortega lançou programas sociais que de fato reduziram a pobreza. Mas não impediram que ela continue obscena: um terço da população (ou 1,7 milhão de pessoas) vive abaixo da linha oficial de pobreza. Se entrar na conta a pobreza multidimensional (a que engloba não só a renda mas também educação, saúde, habitação etc.), são 60% os nicaraguenses em situação de pobreza.

Parêntesis: o IBGE divulgou faz pouco um relatório que mostra que também no Brasil 60% são vítimas de pobreza multidimensional. Fracasso cá, fracasso lá.

Foi esse modelo que explodiu. Uma parcela importante dos nicaraguenses saiu às ruas, em abril, contra projeto do governo de reformar a Previdência Social. O governo reagiu disparando sobre a multidão. Morreram 46 pessoas. A proposta foi retirada, mas as mobilizações de massa prosseguiram. Prova evidente de que se contestava todo o sistema, não um projeto em particular.

Ou, como gritaram os manifestantes que voltaram às ruas na quarta-feira (9), "o povo perdeu o medo, e Ortega perdeu o povo".

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