Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi
Descrição de chapéu Copa do Mundo

Começamos hoje a saber se jogo bonito é de novo coisa nossa

A seleção de Tite está recuperando aceleradamente a magia e a beleza

São Paulo

Era uma vez uma época em que jogo bonito era sinônimo de Brasil.

Tão sinônimo que alguns jornais em espanhol e em inglês usavam a expressão "jogo bonito" em português mesmo. Parecia um código para dizer que "jogo bonito" era um patrimônio cultural do Brasil –e somente do Brasil.

Seleção brasileira treina na Arena Rostov na véspera da estreia na Copa do Mundo
Seleção brasileira treina na Arena Rostov na véspera da estreia na Copa do Mundo - Eduardo Knapp/Folhapress

Não é fácil datar essa época, mas me arrisco a dizer que ela começou, para os mais velhos, com a dupla Pelé/Garrincha, na Suécia, em 1958. Consolidou-se, no entanto, com a seleção campeã em 1970 –a primeira Copa transmitida diretamente e em cores para o Brasil (e, claro, para o mundo).

Antes, a gente podia apenas ouvir o "jogo bonito", mas não vê-lo. Ainda assim, a minha geração acreditava piamente que éramos os melhores e jogávamos tão bem que só roubando nos tirariam o título.

Em 1954, o Brasil foi eliminado pela maravilhosa Hungria, em partida apitada por certo Mr. Ellis (Arthur Ellis), que expulsou Nilton Santos e o centroavante Humberto Tozzi, além do húngaro Boszik. Um juiz que expulsa Nilton Santos só pode ser ladrão.

Nas peladas na rua Bartolomeu Zunega, em Pinheiros, onde morava à época, cada vez que o time adversário reclamava de uma falta nossa, gritávamos "Mr. Ellis".

Não entendo como a Hungria perdeu a final para a Alemanha, fato que deu origem à lenda de que futebol é um esporte em que jogam 11 contra 11 e, no final, a Alemanha ganha.

É um pouco de exagero, mas não muito: a Alemanha é a seleção que foi mais vezes às finais das Copas. Esteve em oito e ganhou quatro (o Brasil foi a sete e ganhou cinco).

Nem esse formidável retrospecto dos alemães tirou do Brasil a fama de ser o dono do "jogo bonito". Os alemães tinham a força, mas a beleza era dos brasileiros. Mesmo quando nem chegava à final (em 1982 e 1986, por exemplo), o Brasil era festejado pela qualidade de seu futebol.

Talvez essas duas Copas tenham sido as responsáveis pelo encerramento da era do "jogo bonito", no Mundial seguinte (Itália, 1990).

O brasileiro –o torcedor e parte da crônica esportiva–​ começou a achar que não tinha graça jogar bem e perder.

Esse espírito impregnou a seleção da Copa de 1990, a começar pela escolha de um técnico absurdamente medíocre (Sebastião Lazaroni).

Na véspera do jogo das oitavas com a Argentina, correu o boato de que eu estava tão seguro de que o Brasil perderia que já havia até reservado passagem para voltar no dia seguinte. Robério Vieira, o "Gata Mansa", assessor de imprensa da CBF (morreu em 2003), veio me cobrar.

Só de pirraça, confirmei que havia marcado o voo (não era verdade). Ele disse: "Azar seu, vai viajar sozinho", pressupondo que o Brasil ganharia.

Terminado o jogo (Argentina 1 a 0), cruzei com "Gata Mansa" no centro de imprensa, e ele, paletó da CBF manchado de lágrimas, me disse: "É, você tinha razão, essa seleção é uma merda". Não poderia haver epitáfio mais autorizado para a era do "jogo bonito".

O Brasil até recuperou o título e por duas vezes (1994, a mais medíocre das Copas, e 2002). Mas permaneceram as dúvidas sobre a qualidade do jogo, que só fizeram aumentar com os fracassos nos três Mundiais seguintes.

O 7 a 1 com a Alemanha até levou ao exagero de transferir o rótulo de "jogo bonito" para os alemães, que, graças à miscigenação e à imigração, afinaram a cintura dura.

A seleção de Tite está recuperando a magia e a beleza, mas só a Copa da Rússia dirá se o "jogo bonito" vence como em 1970 ou morre na praia como em 1982.

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