Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Trump e o cheiro de nazismo no ar

Criminalizar até crianças é uma política aberrante

Homem de boné cinza carrega cartaz na horizontal em cor vermelha, com a expressão "Membro da Ku Klux Klan em chefe" em amarelo e uma caricatura de Trump no meio
Manifestante carrega cartaz associando o presidente dos EUA, Donald Trump, à Ku Klux Klan em protesto contra a separação de crianças filhas de imigrantes ilegais em Nova York - Drew Angerer/Getty Images/AFP

A última coisa que poderia imaginar na vida é que, algum dia, um dirigente americano pudesse ser associado ao nazismo. Afinal, os Estados Unidos foram essenciais para a derrota do nazismo no século passado e gozavam de um certo status de campeões da liberdade.

É verdade que esse rótulo já foi arranhado um punhado de vezes, por terem apoiado ou até financiado a instalação de ditaduras nefandas, em especial na América Latina.

Mas, agora, Donald Trump atropelou todos os limites com a sua insistência em deportar imigrantes e, ainda por cima, separar crianças de seus pais. Voltar atrás agora, como anuncia, não apaga o já ocorrido.

Basta citar a avaliação de David Leonhardt, editor da "newsletter" de Opinião de The New York Times: ele menciona o fato de que Trump usou a palavra "infestação" para se referir à chegada em massa de imigrantes aos Estados Unidos.

E emenda que infestação "é uma palavra particularmente dura porque sugere que imigrantes são equivalentes a insetos ou ratos —uma analogia que os nazistas frequentemente usavam para descrever os judeus, como nota [a colunista] Aviya Kushner em The Forward [centenária publicação judaica]".

É bom esclarecer que Leonhardt não acha que Trump seja nazista, ainda que o ache bastante confortável com "muitas ideias de supremacia branca". Uma maneira sutil de dizer que o presidente é racista.

Aviya Kushner não é a única a pôr o nazismo na avaliação dos episódios que estão chocando o planeta.

Hadley Freeman, colunista de The Guardian, escreveu nesta quarta-feira (20): "Analogias com o nazismo podem não ajudar, mas é impossível para aqueles de nós que somos descendentes de sobreviventes do Holocausto ouvir as gravações de crianças chorando por seus pais e não pensarmos nas crianças judias de nossa família que foram forçadas a se separar de seus pais".

Sempre haverá quem diga que todo país tem o direito de impedir a entrada de imigrantes ilegais. É verdade, mas adotar uma política aberrante como a que está em curso nos Estados Unidos contraria até mesmo a pregação de Mike Pompeo, o secretário de Estado de Trump.

Em pronunciamento sobre o Dia Mundial do Refugiado, Pompeo escreveu:

"Quando deslocamentos globais alcançam níveis recordes, torna-se vital que novos atores —incluindo aí governos, instituições financeiras internacionais e o setor privado— venham à mesa a fim de colaborar na resposta global para enfrentá-los".

E acrescenta com uma frase que só pode ser tomada como cínica: "Os Estados Unidos continuarão a ser um líder mundial na provisão de assistência humanitária e no trabalho para forjar soluções políticas para os conflitos subjacentes que levam aos deslocamentos".

Se ser líder em assistência humanitária é separar crianças dos pais e prendê-las em jaulas, o conceito de humanidade está em seu nível mais baixo desde a Idade da Pedra.

Recordo o escritor argentino Ernesto Sábato (1911-2011), que disse no ato de lançamento das Avós da Praça de Maio, as que buscavam seus netos desaparecidos: "Nós, adultos, de algo sempre somos culpados. Mas as crianças, de que podem ser culpadas as crianças?".

Sorte sua, Sábato, que morreu antes de ver um presidente americano criminalizar também as crianças. Arrepender-se agora é confissão de culpa.

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