Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

A revolução traiu os sonhos

39 anos depois, a Nicarágua volta a pedir liberdade

Grupo de dez pessoas segue camionete que leva caixão na caçamba em uma rua. Ao fundo, um estabelecimento comercial térreo de esquina.
Familiares de Erick Jiménez López, uma das vítimas da ofensiva pró-Daniel Ortega em Monimbó, bairro indígena de Masaya, na Nicarágua, fazem cortejo até o cemitério da cidade - Alfredo Zúñiga/Associated Press

Fidel Castro declamou um belo trecho de peça de Pedro Calderón de la Barca, em sua intervenção nos festejos dos 50 anos do Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio, depois transformado em OMC).

Não me pergunte o que o Gatt tem a ver com Calderón de la Barca, mas o fato é que o já alquebrado ditador eletrizou a plateia (diplomatas em penca, chefes de governo, funcionários internacionais, jornalistas) ao soltar:

"O que é a vida? Uma ilusão,/uma sombra, uma ficção,/e o maior bem é pequeno;/que toda a vida é sonho/e, os sonhos, sonhos são".

Ah, velho Fidel, que triste ver que os sonhos que sonharam parcelas significativas dos jovens e não tão jovens latino-americanos tenham sido soterrados por ditaduras.

Talvez nada seja, hoje em dia, mais emblemático do pesadelo em que se transformaram revoluções de sonho —sonho de liberdade— que a Nicarágua.

Nesta quarta-feira (18), a Organização dos Estados Americanos discutia resolução de censura à repressão desatada pelo governo de Daniel Ortega e sua mulher, a vice Rosario Murillo, contra principalmente os estudantes rebelados. Repressão que, segundo organismos de direitos humanos, deixou ao menos 351 mortos em três meses de levante popular.

A triste ironia é que, há 39 anos, a mesma OEA aprovou em junho resolução condenando o regime de Anastasio Somoza Debayle, o ditador de turno, e exigiu sua substituição imediata.

Um mês depois, Somoza caiu e assumiu Daniel Ortega, o líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional que comandava os "muchachos", os jovens que usavam os cachecóis rubro-negros da Frente.

Nesta quinta-feira (19), comemoram-se precisamente 39 anos da vitória do sonho de liberdade que à época se sonhava.

Agora, no entanto, os "muchachos" estão do outro lado das barricadas, exigindo a saída do novo Somoza, como chamam Ortega, o traidor da revolução, que se aliou à fatia mais reacionária e corrupta da elite nicaraguense para tornar-se um tiranete.

Os "muchachos" agora se declaram em "desobediência estudantil acadêmica", como parte da rebelião contra o novo Somoza. Explicam que governo e autoridades acadêmicas são incapazes de "respeitar e salvaguardar nossa integridade física e mental, a liberdade de expressão, a autonomia universitária e, mais importante ainda, nosso direito de viver".

Agora, a igreja, parte da qual apoiara e ajudara os "muchachos" de cachecóis rubro-negros, apoia e ajuda os "muchachos" que marcham contra o governo sandinista e vestem a bandeira azul e branca da Nicarágua.

A Conferência Episcopal nicaraguense convocou um jejum para esta sexta-feira (20) de explícito conteúdo político. Será, dizem os bispos, "um ato de desagravo pelas profanações realizadas estes últimos meses contra Deus" (alusão óbvia à violência que o governo vem empregando contra manifestações em geral pacíficas).

É razoável supor que o jejum tende a ser o estopim para novas manifestações contra o governo e, por extensão, por novas "profanações" contra Deus (e contra as pessoas, principalmente os jovens).

Será mais uma oportunidade para saber se os "muchachos" têm o direito de sonhar e de viver o sonho de liberdade pelo qual seus pais e avós deram o sangue.

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