Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Nicarágua, PT e Bolsonaro

Como criticar uma ditadura e apoiar outra?

Ortega levanta os dois braços e faz o v da vitória com as duas mãos. Ao fundo, tremulam bandeiras da Nicarágua misturadas com as da Frente Sandinista de Libertação Nacional, nas cores vermelho e preto.
O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, acena a seguidores ao chegar a evento em Manágua que comemorou os 39 anos da Revolução Sandinista em 19 de julho - Oswaldo Rivas - 19.jul.18/Reuters

O PT não tem qualificação moral para criticar Jair Bolsonaro por defender a ditadura e fazer apologia da tortura. Claro que ambas as atitudes são abjetas, mas todas as ditaduras o são e deveriam, pois, ser igualmente criticadas.

Não é o que o PT está fazendo em relação à Nicarágua: no encontro do Foro de São Paulo, conglomerado de partidos e organizações ditas de esquerda, líderes petistas apoiaram o governo de Daniel Ortega.

Lá estavam, entre outros e outras petistas menos votadas, a ex-presidente Dilma Rousseff e a presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann.

Apoiaram um autocrata que comanda um morticínio que já fez mais de 360 vítimas, que tortura indiscriminadamente, que sequestra e faz desaparecer quem se manifesta contra o regime —mesmos crimes que a ditadura brasileira também cometeu e que Bolsonaro defende.

Sobre os crimes de Ortega e sua mulher e cúmplice, a vice Rosario Murillo, leia-se o que escreveu um raro intelectual de esquerda que ainda pensa fora da caixinha, o teólogo Leonardo Boff. Em carta ao Centro Nicaraguense de Direitos Humanos, Boff se solidariza com a "justa crítica [do centro] ao governo que está perseguindo, sequestrando e assassinando seus própios compatriotas".

Boff diz mais: "Estou perplexo pelo fato de que um governo que conduziu a libertação da Nicarágua possa imitar as práticas do antigo ditador".

É, com outras palavras, o cântico dos jovens nicaraguenses que marcham contra o governo: "Ortega y Somoza/son la misma cosa". Ortega, para quem não lembra, liderou a Frente Sandinista de Libertação Nacional na luta contra a ditadura do clã Somoza. Agora, instala sua própria ditadura.

E o PT, em vez de solidarizar-se com os jovens que estão à frente dos protestos, solidariza-se com quem persegue, sequestra e assassina seus próprios compatriotas, para citar Boff.

Boff só é referência para o PT quando visita Lula na prisão?

O apoio do PT ao massacre na Nicarágua não chega a ser surpresa. O partido também apoiou a ditadura cubana e a transformação da Venezuela em outra ditadura, ainda por cima fracassada. É, pois, sócio de ditaduras e de fracassos.

Vejamos a avaliação feita por Onofre Guevara López, jornalista nicaraguense tido como "o intelectual mais destacado no estudo da classe operária", como foi descrito ao tornar-se membro da Academia de Geografia e História do país.

Ele analisa esse apoio como consequência da incapacidade de "distinguir entre o trigo e o joio" por parte dos atuais líderes do Foro. Guevara López acha que há desconhecimento mútuo das realidades concretas de cada país.

Por isso, Dilma e companheiros aceitam a versão de que Ortega é vítima de uma agressão do império e da direita interna.

Completa o jornalista: "Estão fazendo funcionar o script, com o qual caem em uma aplicação mecânica do discurso ideológico sem a menor análise das realidades concretas de cada país, com o que se divorciam mais da dialética marxista e, com sua prática, a contradizem".

Ou, se Guevara López me permite traduzir, diria que significativa parcela da esquerda brasileira e latino-americana adota comportamento de seita religiosa, movida a dogmas que não ousa contestar.

Como criticar, então, a outra seita, a dos seguidores de "Bolsomito"?

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