Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Só a derrota é racista

Alemanha perde, e Özil denuncia a xenofobia

Mesut Özil, o meia alemão, pôs o dedo na ferida do racismo na carta em que anunciou no domingo (22) sua despedida da seleção alemã:

“Eu sou alemão quando ganhamos, mas imigrante quando perdemos".

É a mais pura verdade e revela a tremenda hipocrisia do racismo —essa indecência abjeta em viés de alta em quase todo o mundo. Na Alemanha, prova-o o fato de a xenófoba AfD (Alternativa para a Alemanha) ter obtido 12,6% dos votos e 94 assentos no Parlamento, no pleito de 2017.

O jogador alemão Mesut Özil, que é descendente de turcos, tira foto em Londres ao lado do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan
O jogador alemão Mesut Özil, que é descendente de turcos, tira foto em Londres ao lado do presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan - Kayhan Ozer - 13.mai.2018/Presidential Palace/Reuters

Em 2014, na Copa do Brasil, Özil era alemão e foi um dos destaques da seleção campeã do mundo (sim, aquela dos 7 a 1 que ninguém esquece).

Em 2018, na Copa da Rússia, Özil virou turco. Fracassou, como todos os seus companheiros, eliminados ainda na primeira fase da competição, com um desempenho pavoroso.

Daria até para dizer que só a derrota é racista, não fora pela frase seguinte da carta do jogador: “Ainda não sou aceito na sociedade. Me tratam como alguém diferente".

Achei que Özil desistiria da seleção antes até da Copa da Rússia. Fiquei com vergonha alheia ao ouvir o quanto ele era vaiado, durante o último amistoso da Alemanha antes da Copa, contra a Arábia Saudita, disputado em Leverkusen. Vaias também para Gündogan, igualmente de origem turca.

O crime de ambos: terem posado para fotos ao lado do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, então em campanha para reeleger-se (o que conseguiu). Acho Erdogan um horror, como todo autocrata, mas qualquer cidadão turco ou de origem turca, como é o caso dos dois jogadores, tem o direito de apoiar qualquer candidato. Ao menos, enquanto existirem vestígios de democracia no país, o que ainda é o caso da Turquia, sabe-se lá por quanto tempo.

Como a vitória não é racista, os alemães não se incomodaram com o fato de que, dos 23 campeões de 2014, seis eram imigrantes: Klose e Podolski, nascidos na Polônia e naturalizados alemães; Khedira, de pais tunisianos; Boateng, descendente de ganeses; e Mustafi, de albaneses, além de Özil.

O mais indecente no episódio de Özil é que a campanha contra ele foi desatada pelo próprio presidente da Federação Alemã de Futebol, Reinhard Grindel, ex-deputado da União Democrata-Cristã, partido que encabeça a coligação governante.

O jogador conta que Grindel quis afastá-lo da seleção pela foto com Erdogan, mas não conseguiu porque o técnico, Joachim Löw, e o diretor esportivo, Oliver Bierhoff, não permitiram.

Se serve de consolo para os brasileiros, vê-se que Marco Polo del Nero, o ex-presidente da CBF, não é o único comandante do futebol indigno do cargo.

Em tempo: saiu a lista dos 10 jogadores candidatos a melhor do mundo. Nenhum brasileiro aparece. Não chega a ser tão triste quanto as cenas de racismo explícito que afastaram Özil da seleção alemã, mas é, sim, incômodo sinal dos tempos.


 

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