Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Clóvis Rossi

Bicudo e os crimes que Bolsonaro defende

A época que o jurista denunciou condena o agora candidato

Há um aspecto na biografia de Hélio Bicudo, o jurista morto na terça-feira (31), que deveria ser mais enfatizado neste momento em que Jair Bolsonaro se destaca nas pesquisas para a eleição presidencial.

Deu-se destaque demais, acho eu, ao fato de que Bicudo foi um dos fundadores do PT e um dos formuladores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff. Não que esses fatos devessem ser esquecidos ou minimizados. Bicudo fazia com vigor e convicção tudo em que se metia e, portanto, orgulhou-se também desses dois registros em sua rica biografia.

Mas, do meu ponto de vista, o essencial nela —e aí cabe o enlace com Bolsonaro— foi a tremenda batalha contra o chamado Esquadrão da Morte, grupos de policiais que executavam suspeitos de delitos e desovavam os corpos em algum “cemitério” extraoficial.

Flávia Piovesan, professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós-Graduação em Direito da PUC-SP e da PUC-PR, deu ênfase à essa luta, em seu artigo sobre Bicudo nesta Folha.

Mas é preciso relembrar a época em que Bicudo cuidou de investigar esses delinquentes travestidos de policiais. O Brasil estava em plena ditadura, a polícia e as Forças Armadas eram usadas para reprimir violentamente qualquer movimento dissidente. Esse mecanismo repressor não raro recorria ao que hoje se chama de execuções extrajudiciais —assassinatos de um suspeito sem que ele tenha sido submetido ao devido processo.

Os esquadrões da morte atuavam nesse ambiente sórdido. Investigá-los era, portanto, missão de alto risco que Bicudo assumiu sem se intimidar.

Acompanhei parte de seu trabalho, porque era, à época, chefe de reportagem e editor de assuntos gerais no jornal O Estado de S. Paulo e Bicudo tinha uma seção sobre assuntos jurídicos que era publicada na editoria que eu comandava. Em tese, era, portanto, chefe dele, mas jamais me senti como tal, jovem profissional mal saído da faculdade, ante um personagem relevante como ele.

Mas ficava, às vezes, sabendo detalhes de suas investigações e de como era árduo comprovar fatos envolvendo policiais e mais árduo ainda levá-los a julgamento.

Quem hoje vê a Polícia Federal ser acusada (e às vezes louvada) por isso ou por aquilo, quem vê até o Supremo Tribunal Federal ser objeto de virulentas contestações pode não ter ideia do impossível que era fazer algo nem remotamente parecido naquela época.

Pois Bicudo fazia. Um dos suspeitos de pertencer aos esquadrões da morte foi o delegado Sérgio Paranhos Fleury, um dos ícones da repressão política, morto em um acidente na Ilhabela em 1979, antes de ser julgado.

Havia sido investigado e denunciado pelo então promotor Hélio Bicudo e seu colega Dirceu de Mello por supostos assassinatos praticados pelo Esquadrão da Morte. O Ministério Público de São Paulo apontou-o como o principal líder desse grupo.

Mesmo com essa mancha, Fleury recebeu, da ditadura, a Medalha do Pacificador.

A morte de Bicudo deveria, portanto, servir de alerta contra os que defendem o regime em que vicejaram —e foram premiadas— figuras horrendas, como Fleury, como Bolsonaro o faz, uma e outra vez.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.