Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

As nuvens que o mundo e o Brasil não veem

Pouco se aprendeu da grande crise de 2008

Poucos reconhecem os riscos de mais uma grande crise financeira.

Se essa frase pertencesse a um desses profetas do apocalipse que fazem sucesso desafiando a sabedoria convencional, eu não prestaria muita atenção.

Mas ela está na coluna desta terça-feira (4) de Martin Wolf, principal colunista econômico do Financial Times, um jornalista brilhante, sensato e que pontua seus comentários com abundância de dados estatísticos e de argumentos poderosos.

Martin, com o qual convivo uma vez por ano nos encontros do Fórum Econômico Mundial em Davos, tem uma qualidade adicional, além do delicioso humor britânico que marca suas apresentações: foi capaz de fazer uma autocrítica a respeito do fracasso de 11 de cada 10 economistas em antever a formidável crise financeira que abalou o mundo há dez anos.

Corretor na Bolsa de Valores de Nova York em foto de 7 de agosto deste ano
Corretor na Bolsa de Valores de Nova York em foto de 7 de agosto deste ano - Richard Drew/AP

Não só isso. Passou a temperar seu amor pelo liberalismo com pitadas de saudável desconfiança sobre o funcionamento do livre mercado.

Parêntesis: você conhece algum economista brasileiro que tenha antevisto a crise de 2008? Ou que tenha feito autocrítica sobre essa lacuna? Só vejo arrogância na maioria deles, que se limitam a atacar colegas, como se fossem gênios da raça.

Volto a Martin Wolf e à sua coluna: “A crise financeira foi um devastador fracasso do livre mercado".

Depois acrescenta que “os responsáveis por formular políticas pouco questionaram os papéis relativos de governos e mercados. A sabedoria convencional ainda considera amplamente ‘reformas estruturais’ como sinônimo de impostos mais baixos e desregulação do mercado de trabalho".

Atenção, se você tem visto essa “sabedoria convencional” nadando de braçada no Brasil não é mera coincidência. É uma visão predominante no planeta.

Prossegue Martin: “Formuladores de política têm, em geral, falhado em perceber a perigosa dependência de dívida sempre crescente".

Para colaborar com o colunista do FT, lembro dados que o Fundo Monetário Internacional divulgou em abril: a dívida total dos setores públicos e privados no planeta chegou a US$ 164 trilhões, cifra que nem dá para imaginar e nem vale a pena traduzir para reais. Mais: esse montante supera o que havia no auge da crise financeira de 2008.

Adiante com Martin Wolf: “Poucos questionam o valor das vastas quantias da atividade do setor financeiro ou reconhecem os riscos de mais uma grande crise financeira".

Mais uma ajudazinha a Martin, agora com avaliação do Wall Street Journal, que não é exatamente veículo de propaganda de Ciro Gomes: “O setor financeiro está de novo se tornando uma parte maior da economia. Isso poderia se traduzir em riscos futuros para quem toma empréstimos e para os consumidores em uma futura crise".

O colunista do FT se pergunta por que há essa acomodação e ensaia uma resposta: “Uma causa mais provável para a inércia é o poder de interesses estabelecidos. A economia atual, de rentistas, mascarada como livre mercado, é, afinal de contas, altamente rentável para ‘insiders’ politicamente influentes".

Se você pensou, de novo, no Brasil, está certo de novo.

Por fim, Martin termina dizendo que não basta uma versão melhor do mundo pré-2008. “As pessoas simplesmente não querem um passado melhor; querem um futuro melhor."

Vale para o mundo, vale mais ainda para o Brasil. Pena que se veja tão pouca gente, na política como na academia, manejando o bisturi da análise com o rigor e a precisão de Martin Wolf.

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