Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Trump, o faz-me-rir do planeta

Mas, cuidado, está virando o mundo de ponta-cabeça

Trump faz sinal com os dedos polegar e indicador da mão direita. Ele, que usa terno preto, gravata azul e camisa branca, fala em um púlpito. Atrás, aparecem duas bandeiras americanas.
O presidente dos EUA, Donald Trump, participa de entrevista coletiva em evento paralelo à Assembleia-Geral da ONU em Nova York - Nicholas Kamm/AFP

Desde que me conheço por gente —e lá se vão mais anos do que eu gostaria—, acostumei-me a ver o presidente dos Estados Unidos ser objeto de amor e de ódio em proporções mais ou menos equivalentes. Ser motivo de galhofa, de risadas irônicas, é a primeira vez na história deste planeta.

O que aconteceu com Donald Trump e seu discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas nunca se viu nem na ONU nem em qualquer instância internacional que eu tenha acompanhado —e, olhe, acompanhei um mundão delas.

Recordemos o que disse Trump de tão engraçado: "Em menos de dois anos, minha administração realizou mais do que qualquer outra administração na história de nosso país".

Se você se lembrou de Lula e seu bordão mil vezes repetido (o "nunca antes na história deste país"), fez bem: ambos se acham predestinados.

Imagino que ambos sabem que suas bravatas não devem ser levadas a sério. Trump, pelo menos, sabe, como demonstrou na reação às risadas do público: "Não esperava essa reação, mas OK".

É um bufão assumido.

Bravatas à parte, o que aconteceu na ONU mostra que "o mundo está de ponta-cabeça", como observou Andrew Rettman no EU Observer desta quarta (26).

De ponta-cabeça também pelo fato, acrescento eu, de um presidente americano ser motivo de chacota, em vez de aplausos ou xingamentos, como acontecia até Trump.

Mas Rettman puxou sua análise para algo bem mais sério do que as palhaçadas de Trump: mostrou que a União Europeia montou um show de solidariedade com China e Rússia, contra os EUA.

Trump bem que poderia dizer que nunca antes na história do mundo os europeus se afastaram dos Estados Unidos e se aproximaram de chineses e russos.

A insólita coligação se dá por puro interesse econômico: a União Europeia, a China e a Rússia querem salvar o acordo sobre o programa nuclear iraniano, para que as empresas possam fazer negócios com o Irã, por meio de uma gambiarra financeira.

O mundo está de ponta-cabeça também porque Donald Trump resolveu, sem mais aquela, denunciar o tal de globalismo, para fincar a bandeira do "patriotismo", alçado à nova religião da América, ou, pelo menos, da parte trumpista da América.

Cabe recordar mais uma vez a velha frase do escritor inglês Samuel Johnson (1709-1784), para quem "o patriotismo é o último refúgio dos canalhas".

Se já não fosse o suficiente, ainda há o fato de que o globalismo não é algo de que alguém possa pular fora, no momento em que deseja. No caso dos Estados Unidos, menos ainda, porque foram essenciais para construir as instâncias internacionais primordiais.

A ONU, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, a Otan, acordos multilaterais como o Nafta —todos esses pilares tiveram abundante argamassa fornecida pelos Estados Unidos e beneficiaram bastante o país de Trump.

Já houve um movimento, nas antípodas do trumpismo e hoje em relativo refluxo, que também criticava a globalização. Dizia que "um outro mundo é possível". Queria, portanto, transformar o mundo, não cair fora dele e trancar-se nas próprias fronteiras.

O mundo de hoje já é um bocado complexo. Colocá-lo de ponta-cabeça só complica mais as coisas. Mais uma obra da qual Trump pode gabar-se.

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