Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Ghosn ou de como heróis viram vilões

Uma lição que pode servir para outros mitos

A notícia da prisão do superexecutivo Carlos Ghosn me levou imediatamente de volta a uma sessão do Fórum de Davos, em 1996, sob o título “Quem são os nossos heróis?”.

Só não escrevi algo imediatamente porque quase sempre desconfio de minhas primeiras sensações. Mas na newsletter do Expresso de Portugal nesta terça-feira (20), Elisabete Miranda, sua autora, vai mais ou menos pela mesma trilha de minhas sensações: começa dizendo que “o meio empresarial mundial assistiu, 'boquiaberto’', à queda de mais um dos seus mitos: Carlos Ghosn, o arquiteto da aliança entre a Nissan e a Renault, foi preso no Japão por suspeitas de desvios de fundos e de fraude fiscal".

Lembra depois que o executivo foi transformado em herói de história em quadrinhos no Japão e a seguir rememora os sucessivos epítetos por ele recebidos: samurai, imperador, Mr Fix It (o senhor que conserta tudo), Cost-Killer (o senhor que derruba os custos de uma dada empresa, o que quase sempre significa demitir uma pilha de gente).

Carlos Ghosn, executivo-chefe da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, durante evento em Paris em outubro
Carlos Ghosn, executivo-chefe da aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, durante evento em Paris em outubro; ele foi preso no Japão nesta segunda (19) - Regis Duvignau - 1º.out.18/Reuters

Para boa parte dos brasileiros, Ghosn também era sinônimo de sucesso, como de resto escreveu o leitor Helton Soares para o Painel do Leitor desta terça: “São poucos os brasileiros em posição de destaque que podemos admirar. Eu admirava a trajetória de Carlos Ghoshn. O que leva um sujeito que ganha milhões a fazer maracutaia para ocultar os ganhos?".

De fato, Helton, são poucos os brasileiros que ganham, no planeta, a fama que Ghosn angariou. Sou testemunha ocular de como era idolatrado pelos seus pares de Davos, como presença frequente nos encontros do Fórum Econômico Mundial. Os jornalistas brasileiros tentávamos sempre ouvi-lo, sequiosos por uma palavra do “mito” sobre os problemas da terrinha onde nascera mas com a qual não tinha laço significativo algum.

A resposta para a pergunta do leitor Helton veio da boca de Hiroto Saikawa, presidente-executivo da Nissan: o problema foi o excesso de autoridade delegado a uma só pessoa.

Completa o perfil que o jornal El País traçou dele, “um leão de ambição sem medida, um tipo nascido para mandar, que exerceu o poder com punhos de ferro".

Volto então ao debate sobre heróis travado há mais de 20 anos em Davos. Quem eram, então, os heróis disponíveis?

Para John O'Neil, presidente da Escola de Psicologia Profissional da Califórnia, herói foi Nelson Mandela, não o então presidente sul-africano, mas o prisioneiro que, nos 27 anos de cadeia, enfrentou "a escura noite da alma" e saiu inteiro.

Quem consegue satisfazer a si próprio nessas horas escuras de encontro com a alma é o herói, ensinou O'Neil.

"Herói é uma pessoa que permanece humana em uma sociedade desumana", ensinou por sua vez Elie Wiesel, esse extraordinário escritor, humanista, Nobel da Paz (morreu em 2016).

"Herói é aquele que nunca acha que está sendo bem-sucedido", preferiu Theodore Zeldin (Oxford, Reino Unido), autor da alentada "Uma história Íntima da Humanidade".

Enfim, o contrário exato do “mito” Ghosn. Termino com a já citada jornalista portuguesa Elisabete Miranda: “Afinal, os superheróis só existem mesmo nas histórias em quadrinhos, e mesmo aí, os que não morrem heróis, acabam por virar vilões".

Cuidado, pois, com os novos mitos e heróis. Como Ghosn, podem acabar vilões.

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