Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Palavras importam e podem até matar

Presidentes não deveriam soltar fogo pela boca

Três mulheres aparecem à frente do protesto, segurando cartazes. A do meio segura uma placa alta amarela, com uma caricatura do presidente com um adesivo preto na boca e a expressão por favor
Manifestantes protestam contra discurso agressivo do presidente dos EUA, Donald Trump, após ataque de um antissemita a uma sinagoga de Pittsburgh, na Pensilvânia - Brendan Smialowski - 30.out.18/AFP

Cerca de mil manifestantes se animaram a protestar contra o presidente Donald Trump quando ele visitou na terça-feira (30) a sinagoga Árvore da Vida na qual 11 pessoas foram assassinadas por um fanático antissemita. Gritavam: "Palavras importam".

Alusão óbvia ao fato de que a retórica de Trump, desde a campanha eleitoral e em seus quase dois anos de governo, intoxicou o ambiente nos Estados Unidos, o que, por sua vez, encorajou fanáticos ao ataque.

Intoxicação assim relatada no New York Times em reportagem de Peter Baker e Maggie Haberman no domingo (28): "A morte dos 11 fiéis em Pittsburgh reacendeu o debate a respeito dos sinais que Trump tem mandado, intencionalmente ou não, aos elementos mais radicais nas franjas da sociedade".

No dia seguinte, era impressionante o cardápio de opiniões a respeito, no mesmo jornal. Dois exemplos: "O banho de sangue na sinagoga Árvore da Vida é um sinal de que o ódio ao Outro [assim com maiúscula mesmo] está envenenando nossa vida pública", escreveu Howard Fineman, jornalista-celebridade, hoje na rede NBC.

Já o colunista do próprio New York Times Charles Blow dizia que "Trump flertou com os racistas e nazistas das profundezas, o que não deixou de ser notado, mais ainda por todos eles".

Os trumpistas certamente dirão que essas sensações são coisas do New York Times, jornal que eles consideram "fake news", seguindo a retórica tóxica do próprio presidente. Mas, na terça (30), saiu análise na mesma linha, partida de personagem e em publicação que não deveriam ter razões para fustigar Trump. A publicação é The Times of Israel, país que Trump defende à morte.

O personagem é ainda mais impressionante: chama-se Abraham Foxman, sobreviveu ao Holocausto por ter sido protegido por sua babá católica, e passou sua vida na América combatendo o antissemitismo, especialmente na condição de diretor até 2015 da ADL (Liga Antidifamação, nas iniciais em inglês). Trata-se da mais ativa agrupação de vigilância contra ataques aos judeus e ao judaísmo.

Deveria, pois, estar agradecido a Trump por visitar sinagoga que havia sido a mais recente vítima do ódio aos judeus.

No entanto, Foxman diz que o ataque em Pittsburgh é uma consequência imprevista da ideologia do presidente, porque ela "dá armas ao fanatismo e encoraja extremistas como Robert Bowers, o matador de Pittsburgh". Em seguida, Foxman diz o que ele gostaria de ouvir de Trump em sua visita à sinagoga: 

"Que a linguagem de dividir e conquistar minará o que nós somos —​nossa segurança, nossa democracia, nossa liberdade. (...) Que entendo que palavras involuntárias podem ter consequências muito perigosas— como aconteceu em Pittsburgh. Que pessoas usam tais palavras e abusam delas, e agora eu sei que elas podem ter consequências".

Se se trocar Trump por Jair Bolsonaro, poder-se-ia dizer a mesmíssima coisa. Com uma diferença importante, a favor de Bolsonaro: até agora, a retórica tóxica do presidente eleito provocou, sim, um punhado de cenas de intolerância e algumas agressões verbais, mas ninguém morreu. Ainda é tempo, pois, de esperar de Bolsonaro as palavras que Foxman gostaria de ouvir de Trump.

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