A newsletter do excelente jornal português Expresso recorre a José Saramago, o notável escritor da terra, para descrever metaforicamente a situação no Reino Unido em torno do “brexit”.
A obra citada é “Jangada de Pedra”, de 1986, na qual o que viria anos depois a ser Nobel da Literatura escreve: “Um ato que parecia não ter sentido e esses, recordai-vos, são os que mais perigo comportam”.
Era uma alusão a uma série de acontecimentos sobrenaturais que levariam a península Ibérica a separar-se do continente europeu e a rumar à deriva em direção ao desconhecido.
Pois é: o Reino Unido é hoje essa jangada à deriva. Deveria servir de advertência aos que desfraldam a bandeira do nacionalismo, esse sentimento que levou uma leve maioria de britânicos (52%) a desprender-se da União Europeia. E que Donald Trump ergueu também, pouco depois, e, agora, é o mote igualmente de Jair Bolsonaro.
A alusão à uma nau à deriva impregna bom número de análises sobre o voto de desconfiança, o mais recente percalço enfrentado pela primeira-ministra Theresa May no seu percurso para encontrar a porta de saída menos turbulenta possível da Europa.
Alguns exemplos:
“O que vimos na reação britânica a esse acordo é que não há maioria parlamentar para qualquer tipo de acordo”, disse Amanda Sloat (Brookings Institution) em entrevista para a rede de notícias Newsy.
Reforça Rachel Shabi em The Nation: “Todo o mundo quer um arranjo fácil, desde os ‘brexiters’ que gritam um impossível ‘vamos sair e pronto’ aos que querem ficar e acham que uma segunda votação resolveria tudo”. Fecha Shabi: “Não há saída fácil da bagunça do ‘brexit’”.
De fato, se May teve que suspender a votação sobre o modo de saída por ela costurado com a UE, é, obviamente, porque essa saída suave não passaria no Parlamento.
Passaria um novo entendimento com os europeus que tornasse mais nítido o divórcio definitivo? Impossível de saber porque a UE não está disposta a mexer no já acertado, a não ser cosmeticamente.
Ainda mais que “o caos político na Grã-Bretanha diminuiu a posição de Londres na Europa, que já foi importante”, como escreve Judy Dempsey, do Carnegie Europe Center.
Só restaria, portanto, o “vamos sair e pronto” que os “brexiters” mais radicais gritam.
É um risco demasiado para submeter a um Parlamento dividido: afinal, o próprio governo que trata penosamente de gerir o “brexit” já avisou que, mesmo na versão suave, a saída vai comer 3,9% da riqueza britânica nos próximos anos. Um “brexit” duro causará ainda mais perdas.
O público britânico está ciente disso: pesquisa divulgada nesta quarta (12) pelo Guardian mostra que 44% dos habitantes da ilha acham que estarão economicamente pior em três anos (depois da saída, portanto) do que agora. Só 30% são otimistas. No caso de um “brexit” sem acordo, mais da metade (56% exatamente) se dizem preocupados.
Bem feitas as contas, May pode ter salvado o pescoço nesta quarta, mas continua valendo a avaliação de Glen O’Hara (Oxford Brookes University), que, aliás, remete à jangada de Saramago: “Pelo menos por enquanto, ninguém está no timão, a tripulação está se amotinando e o navio do Estado está em fogo”.
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