Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Vota a maior democracia, desencantada

As manchas na eleição da Nigéria

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Chude Jideonwo, marqueteiro nigeriano que mais recentemente resolveu dedicar-se à felicidade dos conterrâneos, ao criar a Joy Inc., especializada em investir em atividades caritativas, perdeu a alegria, que é seu modo de vida, ao analisar a eleição deste sábado (16) na Nigéria, o maior país africano.

Escreveu comentário para Mail&Guardian, jornal sul-africano, que começa dizendo: “Houve um tempo em que o presidente nigeriano Muhammadu Buhari representou algo profundamente especial - o ideal democrático de que um governo fracassado pode ser punido; e que um partido de oposição pode vencer em um país em que isso nunca acontecera antes".

O presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, faz um comício durante a campanha presidencial na cidade de Lagos.
O presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, faz um comício durante a campanha presidencial na cidade de Lagos. - Temilade Adelaja - 9.fev.18/REUTERS

É verdade: em 2015, Buhari derrotou o presidente da época, Goodluck Jonathan, que aceitou a derrota, fato inédito na história nigeriana.

Buhari é candidato de novo neste sábado, pode vencer de novo, mas Jideonwo e boa parte dos analistas que se debruçam sobre a África acham que o presidente já não representa nada de especial. Ao contrário, adota os velhos hábitos de seus antecessores.

O que, de resto, não é elemento estranho à sua biografia: foi chefe de Estado de 1983 a 1985, depois de liderar o golpe que derrubou o presidente Shehu Shagari, democraticamente eleito.

A mais recente indicação desses velhos hábitos foi o afastamento de Walter Samuel Nkanu Onnoghen do cargo de “Chief Justice", equivalente ao Supremo Tribunal Federal, a instituição que supervisiona o sistema eleitoral, em caso de denúncias.

O afastamento se deu apenas três semanas antes da votação, o que, como é óbvio, despertou fortes suspeitas em um país em que houve apenas uma transição democrática (exatamente a de 2015) desde a independência, em 1960.

Como é de praxe em políticos com tendências autoritárias, Buhari investe tanto contra a mídia que a Nigéria caiu três posições no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras. É agora o 119º entre 180 países.

Outro indício incômodo: o primado da lei - essencial na democracia - não é absoluto para Buhari: em palestra no equivalente nigeriano da Ordem dos Advogados, o presidente disse que “a norma da lei deve estar sujeita à supremacia da segurança nacional e ao interesse nacional".

Tudo somado, é natural que os nigerianos não estejam satisfeitos com o funcionamento da democracia em seu país, conforme mostrou pesquisa do Centro Pew feita em junho/julho de 2018: havia 60% de insatisfeitos contra apenas 39% de satisfeitos.

Contribui para esse sentimento o fato de que, na eleição deste sábado, há 72 candidatos à Presidência, mas apenas dois têm reais chances de vitória: além de Buhari, o outro é Atiku Abubakar, ainda menos ficha limpa do que o atual presidente, tanto em termos de corrupção como de amor pela democracia.

Foi vice-presidente, entre 1999 e 2007, na ditadura de Olusegun Obasanjo.

O que ajudou Buhari a eleger-se em 2015 foi, acima de tudo, a sua promessa de livrar a Nigéria da corrupção, que marcou o período Obasanjo/Abubakar. Teve até alguns êxitos, inclusive recuperando recursos desviados do Estado, mas a Nigéria de Buhari é o 144º país, entre os 180 listados no ranking da Transparência Internacional, conforme já registrou nesta Folha a sempre excelente Flávia Mantovani.

Buhari também não foi bem em outra promessa de campanha: pôr fim à violência, que, na Nigéria, atende principalmente pelo nome de Boko Haram. É uma organização radical islamista que luta no Norte da Nigéria e é apontada como responsável por pelo menos 27 mil mortes desde 2009.

Até no crucial item do emprego, o governo vai mal: a taxa de desemprego subiu de 8,2% em 2015 (quando Buhari assumiu) para os 23,1% do terceiro trimestre de 2018.

É pior para os jovens: entre a população de 15 a 35 anos, 55,4% estão subempregados ou diretamente desempregados. Dos 84 milhões de eleitores registrados, 51,1% têm entre 18 e 35 anos.

Paradoxalmente, só um dos 72 candidatos está nessa faixa etária, Nsehe Nseobong (33 anos).

Para fechar o círculo de aspectos negativos para Buhari, há o fato de que sua saúde é tema de incontáveis especulações, às vezes baseadas em fatos. Exemplo: passou um tempo em Londres, em tratamento de uma doença nunca oficialmente informada.

Em recente reunião em uma comunidade, parecia não entender as perguntas que lhe eram feitas, ao ponto de seu vice-presidente ter sido obrigado a responder por ele.

Na catarata de “fake news” que assola o planeta, Buhari não poderia escapar delas: uma das mais recentes diz que ele foi substituído por um clone sudanês.

O que não é “fake news” é o fato de que a Nigéria, como a maior parte da África, é uma usina de produzir pobres: o Relógio Mundial da Pobreza, criado pela Alemanha, informa que seis pessoas por minuto caem na extrema pobeza. No total, são 44% dos nigerianos vivendo hoje com menos de US$ 1,90 por dia (R$ 7). Para comparação: na Venezuela que Nicolás Maduro arruinou, os extremamente pobres são 15%.

Tudo somado, não é exatamente um cenário favorável à reeleição do presidente de turno, mas, “com uma história de manipulação eleitoral, a possibilidade de uma vitória fraudulenta de Buhari este ano não pode ser descartada", escreve Alex Thurston, professor visitante de Ciência Política e Religião Comparada na Miami University em Ohio.

O que explica a tristeza de Chude Jideonwo, apesar de fundador da Joy Inc: “Onde Goodluck Jonathan arrancou a vitória das garras da derrota ao conceder gentilmente sua derrota eleitoral, Buhari quer arrancar a derrota das garras da vitória ao pavimentar o caminho para uma vitória corrupta e manchada".

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