Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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O estupro da enteada e da Nicarágua

Documentário mostra a infâmia de Daniel Ortega

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Daniel Ortega, ditador da Nicarágua, e sua esposa e vice-presidente, Rosario Murillo, acenam para o público na inauguração de uma passarela na capital Manágua
Daniel Ortega, ditador da Nicarágua, e sua vice-presidente e esposa, Rosario Murillo, acenam para o público na inauguração de uma passarela na capital Manágua - Oswaldo Rivas - 21.mar.2019/Reuters

Está pronto o documentário “Exiliada”, a ser exibido em festivais, a começar pelo de Toronto, em setembro.

Conta a história de Zoilamérica Narváez Murillo, abusada pelo padrasto durante 12 anos, desde que tinha 11 (hoje tem 52).

Mas é também “uma metáfora da crise nacional” [a da Nicarágua], relata Iván Olivares em Confidencial, excelente publicação digital.

O motivo da comparação: o padrasto de Zoilamérica chama-se Daniel Ortega e é o ditador que está violentando também o seu país.

A história de Zoilamérica é ainda mais terrível do que as já terríveis histórias de crianças e adolescentes que sofrem abusos por parte de parentes próximos na própria casa, onde, em tese, estariam protegidas.

Primeiro, Daniel Ortega, de acordo com as denúncias que sua enteada apresentou em 1998, quando já estava com 31 anos, abusava dela nos closets de quartos de hotéis em que se hospedava durante as assembleias gerais da ONU em Nova York.

Zoilamérica Narváez, filha adotiva de Daniel Ortega, dá entrevista em 1998 sobre as denúncias de abuso sexual que fez contra seu pai
Zoilamérica, filha adotiva de Daniel Ortega, dá entrevista em 1998 sobre as denúncias de abuso sexual que fez contra seu pai - Oswaldo Rivas - 26.mai.1998/Reuters

Motivo: ele temia que o governo americano, então chefiado por Ronald Reagan, em conflito aberto com a Nicarágua sandinista, plantasse câmeras para espioná-lo no quarto propriamente dito.

Dizia que ter sexo com ele era, para Zoilamérica, “um dever revolucionário”, porque lhe daria tranquilidade espiritual para exercer as suas funções.

Esse mesmo argumento apareceu depois em público, conta o documentário. 

Nele, se mostra um comício em que Ortega toma o microfone e diz: “Rosario me dizia que queria pedir perdão ao povo por ter uma filha que havia traído os princípios da Frente Sandinista de Libertação Nacional”.

Rosario é Rosario Murillo, a mãe de Zoliamérica, que deu as costas para a filha, abandonando-a a sua sorte.

Ainda assim, Zoilamérica só concordou em contar sua história diante da câmera porque a diretora do documentário, Leonor Zúniga, lhe fez duas promessas: a primeira era a de não fazer um filme de ódio contra seus pais.

Zúniga contou a Confidencial que não interessava a Zoilamérica mostrar os pais como caricaturas diabólicas e, sim, tratar de entender a cultura de impunidade e silêncio. 

A segunda promessa: evitar detalhes dos abusos sexuais, porque sua denúncia, há 20 anos, já relatava tudo.

A diretora do documentário conta que Zoilamérica lhe disse que vê que se aplicam na Nicarágua em geral “as mesmas estratégias e técnicas de opressão que o casal Daniel/Rosario empregou com ela”.

Aí, entra o paralelismo: “o abuso sexual é um abuso de poder, e o abuso sexual se baseia, sobretudo, em desumanizar a pessoa da qual se abusa”, relata Zúniga falando por Zoilamérica.

É exatamente o que está acontecendo na Nicarágua, desde que, em abril passado, se iniciaram os protestos contra o casal. 

A ditadura abusa dos que protestam, por meio de prisões (há 647 presos políticos), torturas, violências sexuais contra manifestantes presas e assassinatos (545 mortos até agora).

Só poderia ser assim: quem tem um comportamento infame com uma criança (qualquer criança, mas mais ainda com uma da própria família) e quem acoberta a infâmia só podem reproduzir a canalhice ao lidar com o conjunto da sociedade.

Mas, ao contrário da solidão em que ficou Zoilamérica, a sociedade nicaraguense tenta unir-se e resistir ao estupro, a um custo terrível.

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