Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

A Argentina e suas bestas negras

Memórias desse fetiche que é o dólar

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O pedaço do coração que bate forte por ti, Argentina, entrou em taquicardia ao ler no jornal Clarín desta quinta-feira (25) declaração do ministro argentino da Economia, Nicolás Dujovne. Quando o dólar tinha uma de suas habituais disparadas, Dujovne disse que, “em algum momento, [os que apostam no dólar] vão perder".

A memória voltou a jato para 1981. Contexto da época: uma ditadura genocida, um dólar praticamente congelado, a inflação (a outra eterna besta negra da Argentina) galopando em pesos.

Homem passa por casa de câmbio em Buenos Aires
Homem passa por casa de câmbio em Buenos Aires - Juan Mabromata - 27.mar.19/AFP

Efeito, no microdetalhe, desse horror no cotidiano de uma família de classe média, como a minha: cheguei a Buenos Aires, como correspondente desta Folha, exatamente no início daquele ano.

Ganhava em dólares, mas era obrigado a retirar o salário em pesos argentinos. O dólar, congelado, era o único produto barato no mercado. Comprava poucos pesos, que, por sua vez, derretiam por hora, não por meses ou semanas.

Primeira trivial providência de quem acaba de se instalar: matricular os filhos na escola. O custo das três matrículas mais o uniforme (então obrigatório) e o material escolar comia todo o salário, todinho, todinho. Não sobrava nem para um mísero cafezinho.

Voltei para casa, liguei para Boris Casoy, então chefe de Redação, e avisei que voltaria ao Brasil no dia seguinte, pela óbvia razão de que era impossível viver daquele jeito. Horas depois, Boris ligou de volta para informar que dobrara meu salário.

Assim mesmo, só podíamos comprar, por exemplo, três “cucuruchos” (casquinhas de sorvete) para dividir pelos cinco.

Aí, em março, a ditadura trocou de general: saiu Jorge Rafael Videla, entrou Roberto Viola. Mudou também o ministro da Economia. Entrou Lorenzo Sigaut e é dele uma frase muito parecida com a de Dujovne, 38 anos depois: “Quem aposta no dólar perde", disse Sigaut.

Dias depois, o peso foi desvalorizado em 30%, o que significa que quem perdeu, como sempre aliás, foi o peso argentino.

Não sei se Dujovne vai perder também, mas há quem anteveja a derrota não só para ele como para seu chefe, o presidente Mauricio Macri. “Macri não pode suportar dois meses mais de uma inflação de 4%", decretou na quinta-feira Joaquín Morales Solá, um dos mais respeitados colunistas argentinos.

Como março marcou um demolidor 4,7% de inflação e, em abril, vieram aumentos de combustíveis, gás e transporte, Macri estaria por um fio, certo?

Parece inverossímil, não creio que aconteça, mas seria coerente com o estado permanente de instabilidade institucional que desgraça a Argentina.

Do meu ponto de vista, mais que políticas econômicas desastradas e guinadas cíclicas para a direita ou para a esquerda, o que explica o estado permanente de crise na Argentina é a instabilidade política já secular.

No século 20, houve seis golpes de Estado (1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976). Nos 53 anos entre o primeiro desses golpe (1930) e o fim da ditadura mais recente (1983), os militares governaram praticamente a metade (25 anos). Impuseram 14 ditadores, ainda que chamados de presidentes, um a cada 1,7 anos.

Mesmo no período democrático pós-1983, dois presidentes legítimos tiveram que deixar a Casa Rosada, a sede do governo, antes do tempo, sitiados por crises (Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa).

Com tamanha instabilidade, não há instituições que consigam se organizar devidamente, não há Estado que possa funcionar com regularidade, não há moeda que consiga ganhar confiança do público, que olha sempre para o dólar.

Talvez por isso, os argentinos usam com frequência um bordão mais melancólico que um tango triste: “Todo tiempo pasado fue mejor".

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