Analfabeto político é alguém que desconhece distinções elementares da vida democrática. Sem compreender o beabá cívico, cidadãos tornam-se mais vulneráveis à manipulação e incapazes de fazer escolhas conscientes.
O estilo Bolsonaro de governo opera pela confusão dolosa de várias dessas distinções: entre democracia, povo, maioria do eleitorado (que ele não obteve) e maioria de votos válidos; entre instituições e vontade do governante; entre interesse público e direitos individuais; entre público e privado; entre Estado e governo; entre governo e partido político.
A distinção entre Estado e governo ganhou mais saliência na crise sanitária do coronavírus. Se o governo Bolsonaro está em campanha permanente contra o Estado, a ameaça atual da pandemia escancarou brutalmente esse modus operandi.
Democracias têm que satisfazer a duas exigências ao mesmo tempo: permitir a escolha periódica entre candidatos e programas distintos de governo; estabelecer instituições que pairem acima dessas diferenças, protejam direitos e respeitem valores constitucionais sem se curvar a maiorias ou favorecer grupos particulares.
Instituições de Estado representam a comunidade política na sua unidade. Governo representa um grupo vencedor, com poder para implementar suas preferências dentro dos limites constitucionais e legais.
Se a distinção já não é simples do ponto de vista conceitual, operacionalizá-la exige uma engenharia constitucional sempre imperfeita. Há instituições e procedimentos decisórios que funcionam pela lógica eleitoral-partidária e assim se legitimam; há outras blindadas desse tipo de pressão e cujos membros devem obedecer a uma ética da imparcialidade sem a qual traem seu dever profissional.
As burocracias técnicas que planejam e implementam políticas públicas (de educação, saúde, segurança etc.), o sistema de justiça composto por juízes, promotores e advogados públicos, as polícias e Forças Armadas, entre outras, são instituições que precisam ser desenhadas e educadas contra o sectarismo. Estabilidade e autonomia são suas garantias.
A engenharia constitucional tenta despolitizá-las e afastá-las das disputas de facção. Bolsonaro busca torná-las servis a seus interesses ou esvaziá-las de capacidade operacional.
São inúmeros os casos. A ocupação completa da cúpula do Executivo por generais da reserva e da ativa, por exemplo, foi uma forma de repolitizar e cooptar as Forças Armadas como método de sustentação de um governo sem apoio congressual estável. Generais morderam a isca do bolsovarianismo (o chavismo brasileiro).
Policiais militares, aliados fundamentais desde a campanha, têm sido cortejados, doutrinados e usados como peças úteis no jogo. Não surpreendem os casos de repressão policial a manifestações artísticas contra o presidente. Ou a complacência com a paralisação ilegal da PM do Ceará, defendida pela família Bolsonaro e pelos ministros Moro e Lorenzoni.
Não foi fortuito que 60% do corte de recursos para o Bolsa Família tenha atingido estados do Nordeste. Ou a transformação da Advocacia-Geral da União em advocacia dos interesses da Presidência.
A AGU distribui comendas de mérito a filho do presidente, aos presidentes do Senado e do STF, a ministros aliados; defende Fabio Wajngarten nas complicações privadas; pede abertura de inquérito contra promotor que critica o presidente; declara que Bolsonaro não apoiou manifestações contra Congresso e STF; diz ao Supremo que o presidente apoia isolamento social; nega existência da campanha “Brasil não pode parar”.
Se até aqui Bolsonaro conseguia atacar o Estado impunemente, a maior ameaça sanitária do século pede o que Bolsonaro não pode entregar: confiança na ciência e nos cientistas, coordenação administrativa e liderança. Mandetta preencheu o espaço vazio. E os generais politizados, ao que parece, roubaram a caneta do presidente.
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