Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes

'Evitar mundos piores' é recado que vale sobretudo para a ação política

Edifício da Constituição de 1988 está sendo passo a passo desmontado

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O historiador Tony Judt, ao olhar com assombro para o início deste século, observou que não era hora de imaginar mundos idealizados e prescrever um caminho sem escalas em direção ao paraíso. Os ventos da história não sopravam a favor.

Sugeriu pensar em como “evitar mundos piores”, em como “proteger instituições e leis, regras e práticas que encarnem nossa melhor tentativa nessas grandes abstrações”. Suspender a utopia para prevenir a distopia —essa era a tarefa primária que enxergava. A ambição não pecava pela modéstia.

Judt se referia a filósofos políticos. As abstrações não ofereciam bom guia prático para o xadrez da ocasião ou para a urgência de se explorar as frestas da conjuntura. A defesa de valores comuns, a essa altura, importava mais que qualquer projeto de avanço à terra prometida. Afinal, é com base na disputa pela versão mais atraente da terra prometida que partidos se dividem.

Tudo isso foi outro dia, e as frestas eram mais generosas.

Não passava pela cabeça desse estudioso do século passado algo parecido com o Brasil de 2020, país em estado de aguda degradação cívica, paralisado na mais grave pandemia em cem anos, e rumo a uma crise econômica e climática inauditas. Para completar, país chefiado por um sociopata, aquele que é desprovido de responsabilidade moral e percepção da dignidade e humanidade do outro, na definição da psicopatologia.

“Evitar mundos piores” é recado que vale para o pensamento, mas sobretudo para a ação política. Diante do mal maior, pede-se concessões pragmáticas, alianças ecléticas e renúncia a projeto eleitoral de curto prazo.

Não é desapego desinteressado, por pura grandeza moral. É uma tentativa de sobrevivência em liberdade, se pelo menos a liberdade for um compromisso compartilhado acima de nossos desacordos.

A Constituição de 1988 encarna “nossa melhor tentativa nessas grandes abstrações”. Em nenhum lugar do passado havíamos alcançado versão melhor de nós mesmos.

Não foi por sua extensa declaração de direitos, nem pelos deveres e responsabilidades que impôs ao Estado, aos indivíduos e às famílias, que a Constituição desencadeou o desenvolvimento institucional e social que assistimos ao longo de quase três décadas. Não foi pela beleza do texto.

Foi antes pelo compromisso de parte das elites políticas em tomá-la como plataforma inegociável para organizar a competição pelo poder. Foi também pelos múltiplos canais institucionais que abriu à sociedade civil para demandar a implementação de políticas públicas.

Essa demanda não precisava mais apelar à generosidade do presidente, à boa vontade do deputado ou ao favor do burocrata bem intencionado. Passou a se expressar, finalmente, pela linguagem dos direitos. Esse novo código mudou a história da cidadania e provocou outra dinâmica institucional, na qual o sistema de Justiça (Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) ganhou protagonismo.

Esse edifício está sendo, passo a passo, desmontado. Não foi e nem será necessário promover mudança no texto constitucional para continuar o esvaziamento do seu potencial. Isso o bolsonarismo aprendeu com a melhor cepa da história autoritária.

As mesmas elites políticas que asseguraram a continuidade democrática desde 1988 entraram em espiral autofágica. Perderam de vista o que estava em risco e embarcaram na disputa sectária inconsequente. Pavimentaram a avenida para o bolsonarismo. Divididas assim, vão ser engolidas. Se quiserem evitar o pior, vão ter que sentar para conversar.

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