Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Bolsonaro te dá liberdade de me matar

A liberdade bolsonara sempre foi um convite à delinquência, mas ser livre é outra coisa

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Quando você reivindica liberdade, importante perguntar do que exatamente quer se liberar. Em seguida, bom verificar se teu desejo é compatível com a liberdade constitucional. Se não quiser perguntar se esse desejo está em sintonia com a virtude cristã, liberal ou conservadora, ou com a decência e urbanidade, não precisa.

Há uma opção em alta no mercado, com pedigree secular na história do país. Ela adotou Bolsonaro como garoto-propaganda. Esse herói da liberdade te oferece um cardápio “diferenciado”.

Durante a pandemia, o presidente tem praticado e vendido a liberdade de infectar. Ela se traduziu na liberdade de não usar máscara e na promessa de que, se a vacina surgir, cada um será livre para não se vacinar, não importam os danos. Na hipersensibilidade bolsonara, nada mais tirânico do que essas obrigações.

A liberdade de infectar não traz novidade, pois as liberdades do portfólio bolsonarista guardam íntima relação com a morte. A mais fundamental é a liberdade de se armar e de atirar em gente suspeita. Daí seu esforço de esvaziar a política de controle de armas no país e de eliminar sistemas de responsabilização do abuso de poder policial. Culmina na liberdade de se milicianizar. Menos Estado, mais milícia.

Em seguida vem a liberdade de viver no meio ambiente que lhe apeteça, a liberdade de poluir, desmatar, incendiar, extinguir espécie e trazer a fórceps o indígena para o seu modo de vida. Na Amazônia, essa liberdade está voando. No Pantanal, fazendeiros livres queimaram 20% do território. Ibama, ICMBio e Funai, que molestam a liberdade do crime organizado, foram praticamente fechados.

Há uma série de outras: a liberdade do motorista de recusar limite de velocidade e cinto de segurança; a liberdade de submeter empregados a condições análogas a de escravo; a liberdade do trabalho infantil e a liberdade dos pais de bater nos filhos para corrigir seus modos; a liberdade de fazer piada sexual com menina de dez anos; a liberdade de um médico recusar atendimento a menina de 11 anos grávida por estupro.

Tem também a liberdade de se apropriar do bem público. A família eleita defende a liberdade para confiscar salários de funcionários e para ter assessores-fantasma. Remonta à liberdade de sonegar impostos que Bolsonaro já defendia lá atrás. Como deputado, praticou a liberdade de quebrar o decoro, elogiar tortura e defender ditadura que, na sua cabeça, também lutou pela liberdade. Se a liberdade de deputar permitia tudo isso, imagina a liberdade de presidir o país.

Esse pacote não é ecumênico. Há certas liberdades que ficaram de fora. A liberdade de não ser infectado, por exemplo, ou a de ter uma política de saúde baseada na ciência. Ou a liberdade de viver em maior segurança e em ambiente sustentável, de não ser explorado, odiado nem discriminado, ou de formar a família que quiser.

A liberdade bolsonara é uma farsa pré-civil e pré-jurídica. Recusa limites em nome do bem comum porque seu instinto primitivo os percebe como ataque à sua virilidade.

A liberdade constitucional, espalhada por ampla declaração de direitos, não equivale à ideia de não interferência estatal na sua vontade de fazer o que der na telha. Não se indaga se limites são possíveis, mas quais limites são justificáveis e não arbitrários.

Definir o que é justificável e não arbitrário dá mais trabalho. E para isso não basta invocar máximas do senso comum: “Minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro”, de Herbert Spencer, ou “a liberdade tem limites”, que ministros do STF dizem pelos cotovelos. As máximas, sozinhas, não indicam onde uma liberdade termina e a outra começa, nem os limites. Ajudam a começar, não a concluir um raciocínio.

Esse trabalho duro costuma caber a juristas. Nessa microengenharia da análise jurídica, precisarão avaliar se limites impostos a um direito são necessários para proteger outro direito. Para complicar, juristas não têm algoritmo em mãos, apenas um método cultivado ao longo da vida e o dever de ser transparente no argumento.

A Constituição nos dá liberdades, limites e responsabilidades. Bolsonaro só te dá liberdade de me matar, mas não se esqueça do vice-versa.

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