Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Deixem crianças na gaiola

Educação do apartheid, pelo apartheid, para o apartheid

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O governo federal editou o decreto da “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. Não se deixe seduzir pela beleza do nome de batismo. Na política pública, o diabo mora na malandragem retórica. Pouca gente deu atenção a esta nova rasteira no projeto constitucional da educação.

Uma das empreitadas mais instigantes do pensamento político nas últimas décadas se deu no campo da educação de crianças com deficiência. Como fazer? Testar as crianças, classificar suas deficiências segundo a cartilha médica e enviar as reprovadas no teste de normalidade para escolas separadas, onde gozam do conforto da exclusão? Ou construir escolas com recursos físicos e humanos para receber qualquer criança?

Nesse embate entre a tradição da “educação especial” e o compromisso com a “educação inclusiva”, o ideal de inclusão prevaleceu. A pesquisa das experiências reais de inclusão ao redor do mundo e dos benefícios trazidos para estudantes com ou sem deficiência não deixou dúvidas sobre qual o princípio mais afinado com a liberdade e a igualdade. A superioridade não está só na filosofia, mas nos resultados. Para todos.

Documentos jurídicos nacionais e internacionais refletiram esse raro consenso cuja implementação trouxe dois grandes desafios. Primeiro, o político: convencer os céticos e derrotar grupos de interesse que nasceram e se alimentaram da educação segregada. Segundo, o operacional e financeiro: investir na preparação de escolas e professores para fazer a inclusão acontecer na sala de aula.

O Brasil esteve na vanguarda desse processo. A Constituição de 1988 estabeleceu que alunos com deficiência deveriam ser atendidos, preferencialmente, pela rede regular de ensino. Nas décadas seguintes, normas jurídicas diversas avançaram nessa direção, como a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006, incorporada como emenda à Constituição brasileira, e a Lei Brasileira de Inclusão, de 2015. A inclusão restou como única opção.

Apesar da insuficiência de recursos e da resistência, escolas públicas e privadas tiveram de embarcar na educação inclusiva ao redor do país. Erraram e acertaram, bateram cabeça, reagiram a reivindicações e ainda têm muito a entregar, mas construíram um sistema educacional que já pode se dizer razoavelmente inclusivo. Uma opção apoiada por 86% da população brasileira, segundo pesquisa Datafolha de 2019.

O tema deixou de ser uma controvérsia pedagógica ou jurídica. Tornou-se pura disputa por recursos públicos na sujeira da barganha política. O diabo também mora nas finanças.

A disputa se dá entre o sistema de educação pública e universal, de um lado, e algumas poderosas entidades privadas que, apesar de sua respeitável história de dedicação a pessoas com deficiência, veem na inclusão uma ameaça existencial. A consequência é trágica: recursos públicos escassos serão dispersados por um sistema privado ineficiente e discriminatório.

O decreto se apropriou do elã da palavra “inclusão” para liberar e facilitar o seu contrário —a segregação. Incorreu em contrabando linguístico prototípico do bolsonarismo (como a defesa da liberdade pela via da repressão, da vida por meio de políticas de multiplicação da morte, da família pela aprovação só de algumas famílias).

Diz adotar um modelo flexível, em que prevalece a escolha dos pais. Ignora que escolhas da família não podem violar direitos da criança. Todo pai e mãe têm direito de exigir do Estado e da escola educação inclusiva e criticar suas falhas. Nenhum pai ou mãe tem o direito de subestimar o potencial de seu filho e impedi-lo de participar dessa sociedade como um igual.

Anos atrás, por ocasião de projeto acadêmico, entrevistei 20 grandes especialistas do mundo sobre inclusão. Guardei duas lições fundamentais: “O desejo de classificar pessoas esconde vestígios do apartheid e suas epistemologias da segregação”, contava a sul-africana Elizabeth Walton; a “inclusão é um projeto que fazemos por nós mesmos, não pelos outros”, resumiu o australiano Roger Slee.​

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