Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Vivendo como se não houvesse Bolsonaro

Negacionismo padrão Barroso não é menos nocivo que outros negacionismos

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Nunca diga que a democracia e a liberdade não correm risco se um defensor da ditadura, da tortura e da morte de dissidentes for eleito presidente. Soou inapropriado e mal informado em 2018. Soou mais inusitado no final de 2020. Melhor teria sido suspender o juízo por um tempo e esperar os fatos. Ou desconversar se, por princípio ou prudência, sua condição institucional recomenda discrição.

Entre os profetas da democracia risco zero, aqueles comentaristas políticos que correram para nos acalmar diante da chegada de Jair Bolsonaro à Presidência, Luís Roberto Barroso é o mais curioso.

Fala de dentro das instituições e, desse lugar, não se considera comentarista. "Sou um juiz e por dever de ofício sou juiz imparcial. Minha lógica não é de apoiador ou opositor. Minha lógica é de certo ou errado, justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo." Para dar conta desse ônus ético, riscou uma linha na areia para medir o que falar: "Não falo do varejo político, minha análise é puramente institucional."

Barroso, também professor, transita com desenvoltura pelo meio acadêmico nacional e internacional. No começo de 2019, por exemplo, numa universidade em Nova York, disse que Bolsonaro era um conservador, não autoritário, e críticas eram "choro de perdedor" que desconhece o jogo da alternância democrática.

Nesses dois anos, Barroso distribuiu gratuitamente pílulas tranquilizantes: "Na objetividade da vida, não há abalo às instituições. É preciso distinguir crise institucional de insatisfação política." "Para além da retórica, não aconteceu nada que comprometesse a democracia." "Não vejo qualquer germe golpista em parte alguma. A fricção entre os Poderes é própria da democracia."

Foi assim, desqualificando críticos como ignorantes ou maus perdedores, que confundem "risco democrático com déficit das instituições", e fazendo pouco caso da ciência política, que desfilou seu impressionismo ilustrado. Continuou vivendo e respirando "como se" Bolsonaro fosse a mistura de Sarney com Temer e pitadas de Collor. Desbolsonariza Bolsonaro o quanto pode.

Semanas atrás, em evento da Universidade Livre de Berlim, insistiu que seu negócio não é o varejo. Da pureza de sua câmara hiperbárica de análise de instituições, constatou que "até aqui elas funcionaram de maneira irrepreensível". Ao elogiar as Forças Armadas como instituição de Estado que não se suja com política, chocou: "Se alguém pagou caro pelo regime militar foram os próprios militares." E você pensava que, com a anistia, tinha ficado barato.

E continuou: "O Congresso combateu medidas provisórias. Não me sinto ameaçado na capacidade de fazer cumprir as minhas decisões. Quando o STF decidiu, as decisões foram cumpridas." Sim, decisões do STF foram cumpridas. Exceto aquelas que não foram cumpridas. Ou exceto quando o STF, preventivamente, engavetou. Ou nem tirou da gaveta para não acirrar os ânimos.

O STF tomou decisões relevantes que desagradaram Bolsonaro. Tanto que o presidente tentou intervir na corte com parecer de Ives Gandra. Não ignoremos essas decisões, muitas do próprio Barroso. Mas o STF também deixou de tomar outras tantas decisões. Omissões agradam Bolsonaro. A leniência com os decretos que desregulamentam, contra a lei, a compra e o porte de armas no Brasil é um exemplo.

Outro exemplo é o descaso governamental com os indígenas durante a pandemia. Barroso mandou o governo apresentar um plano de assistência integral. O governo apresenta rascunhos precários ao STF e segue tratando indígenas com a violência de sempre. Barroso, compreensivo, pede outro e dá prazo. E outro. E outro. Até aqui, nenhuma sanção. Esse ping-pong inconsequente Barroso chama de "diálogo institucional".

A distinção entre o varejo e o atacado da análise política, obviamente, é artificial. Serve para esconder a sujeira. Quando trata de instituições, pinta de rosa o Congresso e o STF, mas não só isso. Deixa de fora o que acontece com outras instituições de Estado, como a polícia e o edifício da proteção ambiental. Para não falar da incitação do ódio, "mera retórica".

A democracia brasileira, até aqui, conteve a quebra, mas a erosão está em curso. A ciência política diria que, na melhor das hipóteses, vamos nos aproximando de um "autoritarismo eleitoral" (Andreas Schedler) ou de um "autoritarismo competitivo" (Steven Levitsky e Lucan Way). Instituições de controle (de "accountability" horizontal, como diz Guillermo O'Donnel) vão ruindo. Restarão eleições, cada vez mais vulneráveis.

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