Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Imunidade parlamentar e liberdade de expressão não são passaportes para a delinquência política

A democracia deve se defender e observar 'quem' está falando

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Quem pergunta se a liberdade de expressão tem limites ou está mal informado ou mal intencionado. Quem invoca essa liberdade como mantra encantatório que valida moral e juridicamente qualquer estupidez falada não entendeu nada. Ou dissimula.

Se pudesse formular uma pílula de conhecimento cívico para vacinar cidadãos contra a ignorância sobre liberdade de expressão, eu não começaria pela máxima "nenhum direito fundamental é absoluto" ou "a liberdade de expressão tem limites", lugares-comuns que deixam muito a dever. Sugeriria uma pílula alternativa: "Os limites da liberdade de expressão não se referem só a o 'quê' se fala em cada ocasião, mas a 'quem' fala". Daí começamos melhor.

Você pode cometer crime pelo "quê" fala se: caluniar, difamar, injuriar, ameaçar, fazer apologia de crime, incitar, praticar ou induzir discriminação, impedir livre exercício dos Poderes. Estão espalhadas por diversas normas (Constituição, Código Penal, Lei Caó e etc.). E a violação ainda pode gerar o dever de pagar indenização por danos morais.

Mas a vida não é simples assim. A aplicação desses verbos a casos concretos se depara com muitas pedras pelo caminho. Saber, por exemplo, se piada de humorista somente ofendeu ou se cruzou linha proibida a ponto de humilhar e incitar discriminação é das responsabilidades maiores de duas senhoras: a jurisprudência e a doutrina jurídica. Elas não oferecem fórmula matemática nem algoritmo, mas critérios que vão ganhando densidade caso após caso.

Essas senhoras cambaleantes da cultura jurídica brasileira precisam construir previsibilidade e coerência. Devem notar nuances, indicar diferenças que importam. Sem isso não podemos separar o joio do trigo. Vira um tudo ou nada, um "acho que sim, acho que não", um duelo ilusório entre liberdade e autoritarismo. É no raciocínio binário que mora a burrice jurídica.

Para complicar, importa "quem" fala. A liberdade de autoridades públicas não é a mesma de um cidadão da esquina.

Não é a mesma coisa quando: presidente diz que te odeia e vai te enviar para a ponta da praia; vice-presidente diz que índio é preguiçoso; deputado defende tortura e ditadura; juiz do STF palestra sobre cleptocracia do PT e saúda a Lava Jato (e dois anos depois a chama de "organização criminosa"); promotor classifica críticos da Lava Jato de "juristas da orcrim".

Não é a mesma coisa quando: general tuíta homenagem a Ustra, e clube de generais espalha notícia falsa; policial vira youtuber, filma operações de guerra e celebra suas "balas perdidas"; dirigente de agência reguladora como a Anvisa participa de aglomeração sem máscara ao lado do presidente.

Agentes de Estado se sujeitam a regime diverso da liberdade de expressão. É por intermédio deles que o Estado fala —do presidente ao guarda da rua, do juiz ao militar. É por meio da conduta desses agentes que instituições buscam se despersonalizar, se despolitizar e se despartidarizar.

Precisam seguir rituais de imparcialidade, liturgias e padrões de decoro. Cidadãos comuns, não. Assumem compromisso ético e performativo. Sua conduta pública educa ou deseduca pelo exemplo, encoraja ou desencoraja. Estão sujeitos, por isso, a regulações e sanções extras: crime de responsabilidade, quebra de decoro, violação da ética profissional e etc.

A imunidade parlamentar dá ao deputado liberdade de expressão qualificada, não ilimitada. Ajuda a democracia a produzir melhores debates, não o deputado a delinquir. E a condição de deputado também traz restrições qualificadas à sua liberdade de expressão: não é a mesma coisa um deputado e o fulano do bar defender a ditadura e a tortura. Parlamentar pode mais ou pode menos que um cidadão comum, conforme o caso.

Calibrar a liberdade é o feijão com arroz rotineiro dos direitos fundamentais. Isso se faz por justificativa pública e juridicamente fina, exercício liberal e republicano, não autoritário (equívoco de Catarina Rochamonte e Atila Iamarino em colunas recentes). Bem diferente de restringir a liberdade arbitrariamente, por ato irracional de força bruta. Valores, objetivos e direitos constitucionais se chocam. Nem sempre a liberdade deve triunfar sem qualquer tempero.

A democracia começa na liberdade de expressão. A democracia termina no abuso da liberdade de expressão. A democracia deve se defender desse risco e observar "quem" está falando.

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