Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Treinando soldadinhos da Damares para a guerra

Projeto de homeschooling insinua falso conflito entre Estado e família

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Recebi muito ensino domiciliar na vida. Sou, em boa parte, produto de “homeschooling”: todo dia, minha mãe, meu pai e meus irmãos discutiam lições de português, matemática e ciências que trazia da escola.

Em parte, minha formação também é resultado do ensino escolar, onde desenvolvi outras habilidades além dos conhecimentos que nos pedem no vestibular. Múltiplas comunidades sociais onde convivi
completaram esse processo.

Não houve maior influência na minha formação do que minha família. Mas respirei fora dela, sobretudo na escola, onde a família escuta, não manda. Eram professores falando, gente que estudou e dedicou a vida à pedagogia.

A Constituição de 1988 consolidou um princípio educacional liberal, que está em sintonia com convenções internacionais no assunto. No artigo 205, diz que a educação é “dever do Estado e da família”, acompanhada da “colaboração da sociedade”. Uma responsabilidade compartilhada, regulada pelos princípios da liberdade de aprender, de ensinar e pesquisar, da garantia de padrão de qualidade e gestão democrática.

O regime constitucional brasileiro, portanto, proíbe o monopólio e exclusividade, tanto do Estado quanto da família, na educação. Permite escola privada, mas também a sujeita aos parâmetros da educação nacional. Reservou um grande lugar às famílias na proteção e educação de crianças e adolescentes.

Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, defensora do ensino domiciliar - Willian Meira - 26.out.20 / MMFDH

Anos atrás chegou ao país um movimento pela educação familiar. Não a que você e eu recebemos, combinada com a escola, mas aquela que rejeita a escola e argumenta que o destino educacional dos filhos pertence à liberdade dos pais. Ou, como justifica projeto de Bia Kicis que tramita na Câmara, “um direito natural garantido aos genitores”, que estão “obrigados pela Lei Natural”, lei que “antecede os direitos humanos”.

Historicamente, a defesa do “homeschooling” se manifestou tanto à esquerda quanto à direita, tanto por anarquistas e movimentos de contracultura quanto por fundamentalistas religiosos. No Brasil, chegou este último. Ele tem algumas características: é cínico, inconstitucional, autoritário, e aprofunda vícios cívicos e sociais.

Cínico porque, para driblar a norma constitucional, insinua um conflito que não existe entre família e Estado. A falácia binária entende que, se uma criança é obrigada a frequentar a escola, significa que o “Estado usurpa o múnus de ensinar das famílias”, como escreve Kicis. É mais ou menos como Bolsonaro dizer que o STF o proibiu de governar na pandemia e deixou aos estados e municípios todos os ônus.

Inconstitucional pelas razões expostas acima. O STF também entendeu assim em 2018. Mas, por influência do voto derrotado e repleto de equívocos de Luís Roberto Barroso (vale ler o artigo “O STF e a Educação: A Terra é Plana”, de Virgílio Afonso da Silva), abriu uma brecha imprecisa para aceitar que, em tese, lei federal regulamente educação domiciliar, “desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado”.

Ninguém entendeu. Barroso queria partir de uma “premissa filosófica” que favorece a “emancipação e a autonomia, não o paternalismo intervencionista”. Daí concluiu que o ensino domiciliar seria direito dos pais. Temperou a ideia com uma proposta genérica de que o Estado “supervisionaria”, como se educação fosse apenas submeter seus filhos a provinhas de conhecimento de vez em quando.

Esqueceu-se de que, por definição, toda educação é paternalista. Mas se pode escolher entre pelo menos dois tipos de paternalismo: aquele que entrega à família exclusividade da experiência educacional, ou aquele que combina a responsabilidade da família com a do sistema escolar. Neste caso, paternalismo misto, que submete o processo educacional a normas discutidas democraticamente e submetidas a mecanismos públicos de prestação de contas.

Barroso escolheu paternalismo autoritário e iliberal. O modelo está fundado na desconfiança da esfera pública e aceita que crianças sejam submetidas exclusivamente ao projeto dos pais (sequer educadores).

O projeto de lei apresentado pela deputada Luisa Canziani, prestes a ser votado, é um festival desses equívocos. Não surpreende que faça o coração de Damares bater: o ensino domiciliar tem sido usina ideológica de produção de soldados para a guerra cultural, não de sujeitos livres.

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