Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Se a Justiça deixa matar, a polícia mata

Tribunal de Justiça de São Paulo tem nova chance de reduzir o PIBB brasileiro

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Raro acontecer, mas 12 policiais militares foram denunciados pelo Ministério Público de São Paulo por homicídio doloso, em razão da "desastrosa operação de dispersão do baile" em Paraisópolis, que deixou nove jovens mortos, quase todos pretos. O mantra da legítima defesa policial não foi suficiente para cortar a investigação pela raiz e impedir, como de costume, julgamento pelo Judiciário.

Legítima defesa tem sido excludente de ilicitude genérica da violência policial. Em geral se presume, não se demonstra. E se arquiva. Até que os mortos provem o contrário. O argumento jurídico potencializa o Produto Interno da Brutalidade Brasileira (PIBB), nossa cota de incivilidade, sofrimento e morte infligida ao Brasil que as leis não alcançam. Uma engrenagem de liberação do abuso da força estatal letal e não letal, subscrita pela Justiça.

Relatório anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que a letalidade policial está em vertiginoso crescimento no país e bateu recorde em 2020, com 6.416 mortes. Dessas, 79% correspondem a pessoas negras. Desde 2013, quando lançada a publicação, com 2.212 mortes registradas, o aumento foi de quase 200%.

O massacre de Paraisópolis (às vezes chamado de "tragédia", termo que borra responsabilidades) tem muitos significados. Primeiro, escancara, outra vez, que a praxe policial não obedece parâmetro normativo e ignora procedimentos definidos pelas polícias. Não existe no país política de uso da força, com critérios transparentes, que eduque o policial a perguntar se e como pode usar a força.

Segundo, revela nossa limitação jurídica e institucional para responsabilizar uma complexa cadeia de comando dentro da qual o policial que puxa o gatilho é braço executor no fim da linha. Há uma limitação jurídica deliberada que se recusa a subir os degraus da hierarquia de onde as ordens emanam. Quando muito, processamos o policial fulano e sicrano. Raramente punimos. Raramente indenizamos famílias das vítimas.

Faz lembrar também o massacre do Carandiru, símbolo maior não só do descontrole policial, mas do descalabro judicial. Como disse o advogado dos policiais que, por ordem superior, invadiram o pavilhão e mataram presos desarmados, "o julgamento está sendo um Nuremberg às avessas, em que os comandantes estão ficando de fora de todo o processo".

Há quase 30 anos, as 111 mortes continuam sem punição, e um processo judicial labiríntico, conduzido em ritmo paquidérmico, continua sem resultados concretos. Enquanto isso, muitos policiais que participaram da ação foram promovidos; poucas famílias foram indenizadas (tendo esperado, mesmo assim, 20 anos em fila de precatórios, fila do pagamento estatal pelas condenações judiciais).

Reduzir letalidade policial não é mistério indecifrável. A polícia paulista há um ano tem gradualmente melhorado seu índice, graças à disposição do comando em controlar uso da força. Entre outras medidas, implantou comissão de mitigação para avaliar casos e protocolos; adotou armamento mais adequado e avaliação de impacto para aferir resultados; ampliou programa de câmeras portáteis e atingiu menor índice de letalidade em oito anos.

O direito constitucional à segurança pública depende não só da indignação contra o policial que comete crime e sua punição, mas controle, procedimentos e uma arquitetura mais abrangente de responsabilização. A polícia torna-se mais eficaz e legítima, e o policial mais protegido e valorizado, quanto mais institucionalizada e controlada. Não o contrário.

Se a Justiça deixa matar, a polícia mata. Se o governador manda ("a partir de janeiro, polícia vai atirar para matar") e o presidente festeja ("quero dar carta branca para policial matar"), mata com gosto. Diante da delinquência política, cabe ao juiz dizer o direito sem medo ou barganha. E sem firula verbal. Se não serve para isso, não serve para muito mais coisa. Continua protagonista do PIBB.

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