Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Descrição de chapéu Folhajus

Não confundirás liberdade com delinquência

Bolsonaro continuará a explorar o bate-cabeça do TSE

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A retórica bolsonarista induz equivalência onde há diferença, e diferença onde há equivalência. Também invoca liberdade onde há delinquência, e aponta delinquência onde há liberdade. E o faz por meio de verve histriônica que estimula pânico moral, atrofia reflexão e forja inimigos imaginários. Ataca o fígado, polui o pensamento.

Essa confusão essencial do projeto de dominação autoritária interdita a civilidade e deixa a esfera pública estupidificada para fazer juízos objetivos sobre fatos e normas. Já a esfera escura do Telegram, testando os limites da lei e da autoridade judicial, vem com sangue nos olhos e pistola nas mãos.

O deputado Daniel Silveira, que dormiu em seu gabinete para não colocar uma tornozeleira eletrônica - Pedro Ladeira - 30.mar.22/Folhapress

A tentativa de obter lucro político com o desgoverno conceitual tem muitos exemplos. O campo da liberdade de expressão é o mais fértil. Já se ouviu que Daniel Silveira teria liberdade de expressão para ameaçar de morte ministros do STF e incitar ataques ao tribunal porque, afinal, Felipe Neto teve tal liberdade para criticar o presidente. Se um foi preso, por que o outro não foi?

A mesma confusão ocorre quando se tenta induzir equivalência entre ordem judicial de suspensão do Telegram, empresa que por um ano ignorou decisões do STF e se recusou a cooperar na investigação de atividades criminosas facilitadas na rede; e a ordem de ministro da Justiça para suspender filme escrito por Danilo Gentili em que um personagem malvado, interpretado por Fábio Porchat, fazia insinuações sobre pedofilia.

Esse esfumaçamento de distinções se espalha para campos inesperados. Até ex-reitor da USP já caiu no vórtice de falsas equivalências. Diante da pressão para indeferir tentativa de intimidação contra docente da universidade, publicou nota genérica onde dizia que professores "às vezes emitem opiniões contraditórias e até discutíveis". Mas assegurou: "defenderei o direito de externarem suas opiniões, mesmo que, com elas, não concorde".

Sofriam processos éticos na universidade um negacionista climático, um negacionista pandêmico que desenhou com Bolsonaro o gabinete paralelo da saúde, e um professor de direito que criticou PGR em coluna de jornal. Tratou tudo como "opiniões pessoais de docentes que resultaram em grande polêmica". Não se permitiu distinguir crítica baseada em fatos e argumento jurídico, de um lado, e corrupção da ciência, de outro. Seria importante.

Quando essa prática contagiosa de manipulação se propaga por meio de infraestrutura industrial de desinformação, com capacidade inédita de customização a perfis pessoais, seu potencial se torna muito explosivo. Em especial no processo eleitoral.

Se o TSE subestimar o momento histórico e continuar a tomar decisões precárias em coerência e fundamento jurídico, não conseguirá sustentar a credibilidade das eleições. Pode cair e levar a democracia junto.

A decisão liminar do ministro Raul Araújo vai nessa trágica direção. Considerou que músicos do Festival Lollapalooza teriam feito "propaganda eleitoral antecipada" no palco. Determinou multa em caso de violação. Sequer dialogou com o requisito legal de "pedido explícito de voto". Nem ponderou se não se tratava de elementar crítica ao atual presidente, que nem candidato é ainda. Nada na lei o apoiava.

Dois dias depois, esculachado por artistas, juristas e instituições em todo canto do país, Araújo revogou sua liminar e saiu de fininho. Disse que se confundiu e pensava ser a organização do evento que "promovia propaganda política ostensiva estimulando artistas". Assegurou que artistas, individualmente, teriam ampla liberdade de expressão. Mas a liminar revogada mencionava só comportamento de artistas, não a organização. Não ficou bonito para a castigada dignidade judicial.

Não é difícil imaginar a exploração que o presidente continuará a fazer desse bate-cabeça jurisprudencial, que não foi inventado por Araújo.

Se artistas têm liberdade para, em evento privado, gritar "fora Bolsonaro", por que não poderia o presidente, em comício pago com dinheiro público, antes do período de campanha, gritar algo na linha de "metralhar a petralhada" e "mandar militantes para a ponta da praia"?

Para um projeto político que desde sempre busca instilar desconfiança nas eleições e na justiça eleitoral, a prática lotérica do TSE ajuda muito. Não que jurisprudência firme impedisse o autocrata de fazer o mesmo, mas pelo menos dificultaria.

O TSE não tem reservas abundantes de capital político para gastar no voluntarismo monocrático aos sábados pela tarde. Essa postura torna mais fácil travestir delinquência em liberdade.

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