Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Descrição de chapéu Folhajus

Cala boca não morreu no STF

O tribunal mui amigo da liberdade de expressão avisou que pode provocar a falência de jornalistas

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"A liberdade de expressão não é absoluta". Essa premissa se tornou o mantra de decisões judiciais sobre abusos da palavra. Incontestável em abstrato, serve como ponto de partida, não ponto de chegada, de raciocínio jurídico.

Não é algoritmo hermenêutico. Exige critérios estáveis e longo caminho de análise de cada caso. Se reduzida a slogan retórico, que tira da cartola soluções abracadabra, vira arbitrariedade judicial.

Com base na premissa "liberdade de expressão tem limites", Daniel Silveira, que ameaçou vida de ministros e incitou violência contra o tribunal, foi condenado por crime. A mesma premissa orientou condenação, por dano moral, do jornalista Rubens Valente, autor de livro-reportagem lateralmente desabonador para reputação de ministro. Decisão de tribunal inferior que, de forma unânime, Moraes, Toffoli, Marco Aurélio e Rosa Weber se recusaram a analisar.

O ministro do STF Gilmar Mendes - Carlos Moura - 30.nov.21/SCO/STF

Os quatro ministros abandonaram a "cláusula da modicidade" para cálculo do dano. Adotaram a "cláusula da maldade" e atenderam pleito do colega decano. Indenização incomum que não serve para ressarcir qualquer coisa. Serve para calar e falir.

Jornalista não está isento de responsabilidade pelo que escreve, mas a decisão não demonstrou nem impropriedades factuais, nem juízos ofensivos do livro. Parece ter inventado direito especial para ministro do STF: o direito de não se sentir ofendido.

O STF tem desfilado como mui amigo da liberdade de expressão e recitado decisões recentes: liberação da marcha da maconha, revogação da lei de imprensa, liberação de biografias não autorizadas e do debate político em universidade. Carmen Lúcia até escolheu a marchinha: "Cala boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu."

Tome cuidado com o autoelogio judicial. Na areia movediça de argumentos moldados pelo acho que sim, acho que não, mesmo quando concordamos com o resultado, segue difícil o tribunal convencer de que uma decisão não foi casuística.

O STF é menos amigo da liberdade do que quer fazer parecer porque mesmo seus acertos exalam a fumaça de voluntarismo populista. A proteção da liberdade pede mais que acertos avulsos.

Pede transparência, coerência e alguma previsibilidade, três bens jurídicos que o STF se recusa a produzir. Acertos avulsos não fazem jurisprudência se ministros não têm compromisso com suas declarações de princípio.

O tribunal não desconhece a diferença entre delinquência e jornalismo, nem entre Daniel Silveira e Rubens Valente. Mas se você procurar, nas decisões, explicação da diferença, não vai achar três gotas de suor descritivo e analítico.

Frustrou, mas não chocou, o silêncio da advocacia progressista (por auto declaração) no episódio. Ela transformou debate jurídico entre garantistas e punitivistas num embate sectário, mal disfarçado de jurídico, entre anti lava-jatistas e lava-jatistas. O sectarismo esmagou o grão de direito que restava. Os dois lados exibem hoje mais equivalências que diferenças.

Anti lava-jatismo se fez lava-jatismo com sinal trocado. No jargão preguiçoso, comprado pelo jornalismo a preço de osso para faminto comer, garantista virou o juiz que manda soltar, punitivista o juiz que manda prender, independentemente da legalidade da prisão ou da soltura. E ilegalidades vão passando despercebidas de um lado e de outro.

Só nesse universo alucinógeno e pouco sincero é possível enxergar Gilmar Mendes e, claro, Augusto Aras, como restauradores do estado de direito e homenageá-los em eventos laudatórios. Diante do imenso atentado à liberdade de imprensa praticado pelo mais poderoso dos magistocratas, melhor sair de fininho. Pau que bate em Moro não bate em Gilmar.

Arruinar vida do repórter que manchou sua reputação não é o principal objetivo de empresário-censor, político-censor ou juiz-censor. Sua maior vitória, sempre, é deixar todos os outros jornalistas com medo da próxima reportagem. Pode custar um milhão de reais. Ou mais, ou menos, ninguém sabe.

Valente, repórter respeitado, contou com onda de solidariedade que lhe poupou endividamento vitalício. Outros não têm essa sorte. Sem estruturas de apoio, jornalismo vira assessoria da corte.

Quando o exercício da liberdade depende de heroísmo e conta bancária, o cala boca continua firme. No STF, o cala boca morreu só da boca pra fora. Flutua conforme a razão e sensibilidade de cada ministro. O tribunal não nos ajuda a ajudá-lo nem quando mais precisa.

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