Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

A lógica jurídica do massacre

Três anos de Paraisópolis e 30 anos do Carandiru resumem terror estatal sem consequência

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sistemas jurídicos costumam ter pouca disposição em punir os de cima e proteger os de baixo. Quanto mais desigual um país, mais infalível essa lei geral da sociologia jurídica.

Não estamos falando de ambições mais petulantes por igualdade substantiva, que exigem alguma distribuição de riqueza e inclusão. Assimetrias de poder impedem instituições de concretizarem o modesto direito de "ser tratado igualmente perante a lei". Nem mesmo outra regra elementar da igualdade formal, "um cidadão, um voto", consegue atenuar o fenômeno. E adicione uma boa dose de racismo.

Protegem-se os fortes e punem-se os vulneráveis, e isso guarda pouca relação com a legalidade ou gravidade de suas condutas. O mais curioso é que essa violação fundamental do direito se oficializa com o carimbo das autoridades jurídicas. Essa operação de contrabando, que valida juridicamente a quebra do direito e apaga responsabilidades, é obra coletiva de juízes, promotores e advogados.

Paraisópolis e Carandiru são as mais majestosas contribuições da magistocracia paulista (orgulhosamente autodenominada "bandeirante") ao crescimento do PIBB - Produto Interno da Brutalidade Brasileira.

Corredor do Carandiru, na zona norte de São Paulo, após intervenção de policiais militares em outubro de 1992 - Niels Andreas - 2.out.1992/Folhapress

Trinta anos atrás, o Governo de São Paulo autorizou a execução policial de pelo menos 111 presos naquele que se tornou o maior morticínio do sistema carcerário na história brasileira. Nesse período, não houve autoridade investigada. Nenhum policial foi preso apesar da condenação de 74 agentes, cujas sentenças percorrem o labirinto das anulações e obstruções do Tribunal de Justiça de São Paulo.

A absolvição do coronel Ubiratan, depois de condenado pelo júri, em fundamentação jurídica para lá de extravagante, é só um exemplo mais grotesco. Nem experimente ler essas sentenças para não se deparar com frases como "se não tivesse roubado, não estaria preso" ou "se estivéssemos na China, famílias pagariam a bala".

Três anos atrás, policiais militares encurralaram uma multidão de jovens em baile na comunidade de Paraisópolis. Nove crianças e jovens negros (Bruno, Luara, Gustavo, Eduardo, Gabriel, Mateus, Marcos Paulo e dois Dennys) morreram asfixiados. Dezenas saíram feridos. Doze policiais foram denunciados por homicídio doloso, e a primeira audiência de julgamento está agendada para julho de 2023.

O relatório "O Massacre no Baile da DZ7, Paraisópolis" (produzido pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp em parceria com os núcleos de Cidadania e Direitos Humanos e da Infância e Juventude da Defensoria de São Paulo, com ajuda de familiares das vítimas) disseca e escancara as velhas estratégias de irresponsabilização jurídica embutidas nos métodos de produção de provas pelas autoridades.

Com base no testemunho de policiais, reconstruiu-se o evento com base nos conceitos de resistência, pisoteamento e socorro prestado pelos policiais, diante de suposta conduta violenta dos jovens. Uma versão que isenta policiais de responsabilidade, mas não encontra respaldo em registros de áudios, vídeos, fotografias e nos corpos das vítimas.

O relatório fundamenta, a partir de investigação empírica, a tese de que "não foi resistência" (porque o fato alegado por policiais para justificar a necessidade da intervenção era falso); "não foi pisoteamento" (mas estratégia de cerco e terror que levou à compressão de corpos sem rota de fuga, o que causou sufocação indireta); "não foi socorro" (porque policiais não cumpriram protocolos básicos de resgate e primeiros socorros).

Os massacres de Carandiru e Paraisópolis têm dimensões diferentes do ponto de vista quantitativo, mas uma óbvia afinidade qualitativa para mapear o código operacional da violência estatal e, sobretudo, de sua legalização e institucionalização.

Não houve "tumulto", não houve apenas uma "tragédia", palavras que escondem ações e omissões, causalidades e responsabilidades. Houve massacre perpetrado por corporação cuja cultura da violência e da letalidade se baseiam na complacência e na cumplicidade de autoridades políticas. Ainda costumam ser premiadas eleitoralmente, já que a tradição de leniência jurídica autoriza que permaneçam na vida pública.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.