Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu

Cegueira da razão

De um lado há nacionalistas crescendo e, do outro, a repetição abstrata de um universalismo assistencial

Macerata é uma cidade italiana, de pouco mais de 40 mil habitantes. Eu a conheço bem porque é o centro mais próximo de Montegranaro, cidadezinha da família de minha mãe, onde passei muitas férias de infância, sobretudo na semana de Páscoa.

Ilustração Contardo Calligaris
Mariza Dias Costa/Folhapress

Perto da praça central, surge o Sferisterio, uma arena semicircular que foi construída no começo do século 19 para o jogo de bola que era popular na Europa desde o século 16 e que se chamava, na Itália, "pallone col bracciale", ou seja, bola com braçal. O Sferisterio é hoje uma arena lírica, com uma estação de óperas durante o verão local.

Macerata é também sede de uma universidade e capital de província. Tudo isso faz que ela não seja nem fechada ao mundo nem isolada dele.

Agora, a planta urbana de Macerata preserva a forma e o aspecto de um burgo, em cima de uma altura. Apesar dos povos variados que passaram por lá (galos, siracusanos, romanos etc.), Macerata parece uma cidade zelosa por algo que deveria ser preservado --talvez sua beleza.

Pelas ruas de Macerata, no sábado passado, Luca Traini, 28 anos, semeou o pânico: ele circulou atirando nos negros que ele encontrasse, feriu 11 (do Mali, da Nigéria e do Gana), dois gravemente.

No fim, não opôs resistência. Antes de ser preso, colocou nos ombros uma bandeira italiana.

Em eleições municipais de 2017, Traini, originário da região e nostálgico fascista, tinha sido candidato a vereador da Liga Norte (partido contrário à imigração dos "refugiados" na Itália).

Os disparos foram ao redor de Via Spalato. Três dias antes, em Macerata, Pamela Mastropietro, 18, foi morta e despedaçada: seu corpo foi encontrado em duas malas de rodinhas nos campos ao redor da cidade. Em via Spalato residia, antes de ser preso, um nigeriano de 29 anos, traficante de drogas, que está preso e é acusado pelo assassinato de Pamela.

Traini disse: "Queria vingança por Pamela e fazer algo contra a imigração, porque o fenômeno da imigração clandestina deve ser parado".

O Presidente do Conselho dos Ministros da Itália, P. Gentiloni, declarou: "O ódio e a violência não conseguirão nos dividir". Pergunta: "nos" quem?

Os políticos parecem concordar: Traini é um louco, não devemos instrumentalizar eleitoralmente o que aconteceu.

Ok, mas vamos com calma. Jaspers dizia que a loucura começa quando não conseguimos mais entender as causas do comportamento de alguém. É o caso de Traini? Acho que não.

Detesto fascistas e nacionalistas: sonho com um mundo sem fronteiras e sem passaportes. Mas a primeira regra, para evitar catástrofes, consiste em enxergar o que acontece de fato.

Da Holanda à Dinamarca, da França à Finlândia e ao Reino Unido do "brexit", no mínimo 20% dos europeus se opõem à imigração de refugiados asiáticos e africanos.

E qual parte da população dos EUA concorda com a tese de Trump de uma invasão em curso por estupradores e criminosos centro-americanos?

Todos racistas e fascistas? De que adianta qualificá-los assim? Em vez de interrogar e considerar as dificuldades concretas de conviver com diferentes, preferimos estigmatizar a "intolerância", abstratamente. Cuidado, quanto mais conclamarmos que só importa a espécie humana, à qual todos pertencemos, tanto mais teremos reações extremas de particularismos violentos (a teoria racista surgiu no século 19 como reação à ideia iluminista da unidade da espécie humana).

O advogado de Luca Traini relata que já está sendo parado na rua por pessoas que expressam solidariedade a seu cliente. Ele afirma que Luca deve ser julgado como criminoso, mas também constata que ele é a ponta de um iceberg que foi criado pelos políticos que não levaram a sério a questão da imigração e da integração dos refugiados.

Em suma, de um lado há partidos nacionalistas crescendo e neofascistas atirando e, do outro, a repetição abstrata de um universalismo lacrimejante e assistencial. Exemplo?

Georges Didi-Huberman, num livro recente, "Passer, quoi qu'il en Coûte" (passar, custe o que custar), quer comover seus leitores: "Ter fugido, ter perdido tudo. Passar, para tentar viver aqui, onde a guerra é menos cruel. Passar, para viver como sujeitos de direito, como simples cidadãos. Pouco importa o país, à condição que seja um Estado de direito".

Fala sério: os caras se jogam no Mediterrâneo e tentam atravessar de qualquer jeito, e isso por amor pelos valores do século 18 francês?

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