Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu

As coisas que mais nos importam

Vivemos numa cultura que nos aconselha renunciar ao cotidiano prazeroso em nome de um bem superior

Ilustração coluna Contardo Calligares
Mariza Dias Costa

Num dia da semana passada, em São Paulo, uma jovem mulher, mãe de família, pesquisadora e escritora, acordou de repente pelas cinco da manhã e tentou sair da cama. O companheiro, que dormia com ela, tentou (gentilmente) agarrá-la e impedi-la de levantar, até porque, ao que eles mesmos dizem, essa hora matutina é um dos momentos em que eles transam, a cada dia, antes de dormir de novo por uma hora.

Desta vez, a jovem mulher se desvencilhou, levantou um dedo, como quem pede tempo, e disse: "Preciso anotar umas ideias no meu caderno". Ela saiu da cama e foi fazer suas anotações no banheiro.

O companheiro riu, por se sentir caricaturado: em geral, o dilema atormentado entre os pensamentos "nobres" e a suposta "trivialidade" da vida de casal (sexo, crianças e fins de mês) é masculino: quem se extirpa da cama para anotar ideias noturnas, em tese, seria o homem.

Mulheres, como mostra o exemplo, têm ideias noturnas, mas talvez sejam mais sábias que os homens e conciliem melhor suas ambições e ideias com os "prazeres" concretos da família e vida amorosa.

Seja como for, os homens são os que mais dizem estar envolvidos no plano de acumular riquezas descomunais ou de produzir obras de gênio e de serem, justamente por isso, impossibilitados de se dedicar ao amor, ao casamento e às relações.

Os homens são os forçados de sua própria aspiração a serem extraordinários, de uma maneira ou de outra. Comparado com essa tarefa, o cotidiano lhes parece frequentemente como uma diversão não autorizada. O novo filme de Paul Thomas Anderson, "Trama Fantasma", trata de um homem que não sabe conciliar as obrigações de sua genialidade com a "trivialidade" do amor e da conjugalidade. Rigorosamente nenhum spoiler: não quero estragar o prazer dos futuros espectadores.

O filme é imperdível --especialmente para quem percebe que seu consorte fala e age como se a vida conjugal o privasse de "outra" aventura que (pensa ele) estaria à sua espera, se não se perdesse nesta vida trivial. Mas vamos com calma.

Seu companheiro fica no computador noite adentro, "trabalhando"? Ele não se deita junto com você por causa disso? E foge dos programas comuns alegando obrigações devorantes? Em geral, ele está lhe mentindo ou se mentindo.

Em boa parte dos casos, seu companheiro procura desculpas porque ele não está à altura das ambições dele; de fato, ele passará a noite jogando videogame ou assistindo a pornografia, culpando-se por isso, e ainda assim pensando que você é responsável pela inépcia dele.

Claro, outra possibilidade é que o consorte não esteja mais a fim da relação, na qual permanece por inércia. Agora, ainda há situações, digamos, mais autênticas, em que o homem ou a mulher se rebelam contra a tagarelice e o prosaico: cuidar das crianças, esquentar a sopa, fazer a cama"¦ E perguntam: como conciliar o serviço do cotidiano com os supostos deveres de nossas ambições e de nossos ideais?

Note-se que só quem gosta do cotidiano se atormenta com essa pergunta. Se o cotidiano não lhe resultasse prazeroso, por que seria um problema se afastar dele ou recusá-lo? O drama, então, é que, para seguir nobres e sublimes ambições, o indivíduo deveria fugir de uma trivialidade prazerosa.

De fato, um cotidiano agradável só se justifica por si só, pelo prazer que proporciona.

Por isso mesmo, muitos preferem vivê-lo como se fosse um mal menor, algo que aceitamos por preguiça ou, pior, por covardia diante dos desafios que nosso desejo nos colocaria se o escutássemos.

Se admitimos que podemos gostar da trivialidade e mesmo desejá-la, é para declarar imediatamente que é preciso renunciar a ela, em nome de tarefas outras e sublimes.

Vivemos há dois milênios, desde São Paulo (não a cidade, o apóstolo), numa cultura que nos aconselha renunciar em nome de algum bem superior. Consideramos, aliás, que nosso "verdadeiro" eu é aquela parte de nós que se relaciona só com o tal bem superior (deus, a revolução ou o primeiro bilhão, tanto faz). Por isso, para que possamos viver com um parceiro ou uma parceira, é preciso que ele ou ela nos matem um pouco.

Ou seja, um bom consorte é aquele que nos ajuda a matar em nós as exigências malucas que nos transformam em eternos estranhos no nosso próprio ninho. Mais do que isso, só no filme.

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