Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu Em 1968 educação França

Maio de 68, a revolução que deu certo

As revoluções não adiantam nada sem o esforço para sermos revolucionários

Ilustração
Mariza Dias Costa

Hoje é 17 de maio. Foi quando a greve geral começou a parecer possível. Uma semana depois, nove milhões de franceses cruzariam os braços. Chegar a Paris de carro se tornaria uma aventura (os postos estavam todos fechados).

Lembro-me de alguém, na faculdade (eu cursava ciências políticas na "Statale" de Milão), anunciando com alegria que, na França, "os companheiros dançam nas usinas ocupadas".

Eu frequentava pouco a universidade. Viajava com frequência para os EUA, onde as batalhas da contracultura (Vietnã, direitos civis, movimentos gay e feminista) me inspiravam mais do que a realidade italiana.

No começo, na "Statale", a maioria dos estudantes entendia os acontecimentos de Paris como um prelúdio revolucionário que talvez trouxesse, enfim, a única coisa que podia mudar a vida de todos: o fim da propriedade privada dos meios de produção. Com a entrada dos "proletários" na luta, o circo capitalista pegaria fogo.

Agora, os ditos proletários, quanto a eles, não estavam nem aí com a mudança de propriedade dos meios de produção. Não queriam estatizar as fábricas. Eles, aliás, nem se consideravam proletários, mas classes médias a fim de uma qualidade de vida melhor: aumentos salariais e alguma participação nos lucros e nas tomadas de decisão da empresa em que trabalhavam.

O momento mais importante de 68 para mim foi em agosto: a invasão da Tchecoslováquia pelos soviéticos. Eu conhecia a monstruosidade do regime; mesmo assim, há uma foto minha, bem na hora em que me chegou a notícia do fim da Primavera de Praga: estou boquiaberto e arrasado.

Um pouco por isso, um pouco pelo contato com a contracultura dos EUA e muito pela constatação de que os operários não eram proletários do manual marxista, 68 foi (para mim e para muitos outros) o ano em que descobrimos que, para fazer que a vida seja aceitável ou intragável, o que mais importa talvez sejam as formas de domínio que nos controlam.

E as "formas de domínio" são mais daninhas, mais invasivas e menos óbvias do que as grandes estruturas da sociedade na qual vivemos. Ou seja, as formas de domínio nos atormentam e nos constrangem, quer a gente esteja num regime capitalista ou comunista.

Bem em 68, em março e abril, num seminário, eu tinha lido "Da Tirania", de Leo Strauss (É Realizações). Para Strauss, o problema político não deve ser resolvido pela participação de todos, mas pela excelência dos que governam (quem dera). A suposta liberdade de todos, segundo ele, acaba num relativismo que não respeita nenhum valor fundamental —com duas consequências possíveis: uma brutalidade idiota (nazismo, stalinismo, ditaduras) ou, então, um vale-tudo hedonista e permissivo (as nossas democracias).

Eu gosto do nosso vale-tudo permissivo e hedonista, e desconfio de Strauss, mas ele me levou a perguntar: será que, nesse vale-tudo, somos livres?

Por sorte, 68 foi também o ano em que li "As Palavras e as Coisas" (Martins Fontes) e descobri Michel Foucault. Foucault nunca me deixou desde então. Ele se tornou um guia imprescindível para entender as formas e os caminhos do domínio, na nossa época supostamente tão livre (hedonista e permissiva, pensava Strauss).

Com Foucault, comecei a suspeitar da extraordinária diversidade de técnicas que nos servem para dominar a nós mesmos e aos outros.

São dispositivos invisíveis, que se confundem com comportamentos ditos "normais" e expectativas sociais quase triviais: em suma, há normas implícitas, silenciosas, que sequer aparentam regrar nada e que seguimos porque seus mandamentos seriam "razoáveis" ou "naturais". Não adianta mudar o sistema político ou a organização do trabalho sem revelar e combater as formas ocultas de domínio sobre as vidas concretas.

Um exemplo? Onde começa o fracasso da Revolução Cubana? Na conjuntura da Guerra Fria? Ou nessa frase de Castro, o revolucionário, em 1965: "Jamais chegaremos a acreditar que um homossexual é capaz de encarnar as condições e os requisitos de conduta que permitiriam considerá-lo um verdadeiro revolucionário, um verdadeiro militante comunista"?

Essa foi a grande lição de 68: as Revoluções (com R maiúsculo) não adiantam nada sem o esforço para sermos revolucionários (com r minúscula), ou seja, sem o esforço para escapar da nossa própria paixão de regrar e controlar a vida concreta, a dos outros e a da gente.

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