Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu

O grande conflito em curso

Vivemos um embate entre impérios culturais ou há uma contradição no Ocidente?

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

Em maio, em Châteauroux (França), a polícia prendeu um homem "convertido ao islã e radicalizado" e encontrou, na casa dele, uma bomba caseira, que ele planejava usar, segundo se expressou, "contra um clube libertino" —entende-se: uma casa de swing.

Os jornais franceses assinalaram, nessa ocasião, que mais dois homens foram inculpados, no sábado passado, na região de Sena e Marne, por um juiz antiterrorista: segundo a agência francesa de imprensa, "eles se preparavam para atacar homossexuais".

Lembrete: o atentado terrorista mais letal desde o ataque contra as Torres Gêmeas foi o assassinato de 49 pessoas numa boate gay, em Orlando, Flórida, em setembro de 2016.

Essas histórias talvez revelem apenas o óbvio: fundamentalista é alguém que persegue (ou mata) no outro seus próprios desejos, que ele tenta e não consegue controlar.

E se essas histórias revelassem algo mais? Por exemplo, se elas fossem premonitórias de um conflito social e político que logo será crucial, decisivo?

Com o fim da União Soviética, surgiu a pergunta: será que a mola de nossa História é (ainda) o conflito entre exploradores e explorados —entre trabalho e capital?

Ninguém duvida que esse conflito continue vivo. A pergunta era (e é) somente: será que ele ainda é a contradição principal de nossos tempos?

Na época, dois livros responderam a essa pergunta, chegando a conclusões parecidas.

O primeiro foi "O Fim da História e o Último Homem", de Francis Fukuyama (Rocco, 489 págs.). Segundo o autor, com o fim da guerra fria, o individualismo ocidental e a democracia liberal teriam ganho a guerra contra as ditaduras e os ideários fascista, socialista ou comunista.

Se a conflito principal da História era a luta de classes, a História acabou.

Obviamente, o mundo pós-histórico continuará enfrentando problemas de ordem econômica, mas a contradição principal será entre liberalismo e fundamentalismo (em particular, islâmico —isso, profetizado antes de 2001).

O segundo livro é "O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial" (Objetiva, 456 págs.), de Samuel P. Huntington.

Para o autor, acabou a era das ideologias, e o mundo volta à sua maneira normal de funcionar: por oposição e conflitos entre culturas.

Ora, para Huntington, o conflito entre o Ocidente e o islã é antigo e não acabou. Portanto, o fundamentalismo islâmico será o antagonista principal do Ocidente.

Tanto Fukuyama quanto Huntington consideravam que o conflito principal seria (ou voltaria a ser) entre culturas.

Ambos também consideravam as culturas opostas como se fossem impérios —cada uma com sua extensão geográfica. Claro, eles levavam em conta a existência de uma quinta coluna islâmica dentro do Ocidente (é da imigração islâmica que, de fato, veio a maioria dos terroristas dos anos 2000).

Mas eles não pareciam considerar que, no próprio Ocidente, existe outro inimigo da modernidade ocidental, que é o aliado objetivo do fundamentalismo islâmico. Esse inimigo é o fundamentalismo cristão.

O cristianismo e o islã têm muito em comum. São religiões missionárias (que procuram converter o mundo a suas crenças) e são religiões com vocação universal: ambas acreditam que sua fé e seus valores são certos para a humanidade inteira.

Isso é suficiente para que uma parte da cristandade se torne inimiga da modernidade ocidental que o cristianismo promoveu —aproximando-se, assim, do fundamentalismo islâmico.

Resumo. O cristianismo contribuiu para que a autonomia moral do indivíduo se tornasse o valor central da cultura ocidental. A longo prazo, a consequência foi que o indivíduo soltou a franga. As igrejas, herdeiras e gestoras do cristianismo inicial, tentaram (e tentam) voltar atrás e desfazer a modernidade que o próprio cristianismo introduziu.

Fukuyama e Huntington afirmam que a trama da História é agora um conflito cultural; mas se trata de um conflito entre impérios culturais (por exemplo, islã e Ocidente)? Ou se trata de uma contradição no próprio Ocidente?

Sem dúvida, essa contradição existe dentro das consciências ocidentais, onde a liberdade é parasitada por culpas desnecessárias. Mas também ela explode em campo aberto, quando os nossos fundamentalistas caseiros lutam para impor a todos sua maneira "certa" e única de gozar.

Questão: essa batalha pode ser a contradição principal do momento e do futuro imediato? Tendo a pensar que sim. Mas, claro, o futuro dirá.

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