Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Mais sobre os boçais

Grupo serve para me autorizar a fazer coisas das quais, sozinho, me envergonharia

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

Aos 12 anos, quando não me sentia preparado para uma prova, eu faltava à aula. Se minha mãe considerasse que eu tinha passado o dia estudando, ela topava justificar minha ausência. Outras vezes, ela não topava, e eu não ia para escola: passava a manhã na rua, ou melhor, numa sala de sinuca do centro, lendo.

Numa dessas manhãs do inverno de 1962, havia 20 pessoas na sala, a maioria jogando. Entraram dois jovens de casaco de couro preto. Um deles ergueu o braço direito e gritou a saudação fascista: "Viva il duce!" Silêncio e imobilidade na sala. Ele acrescentou: "Quem não repete 'viva il duce' é filho da puta e veado". Os presentes resmungamos coletivamente "...viva il duce...".

O jovem, satisfeito e risonho, já ia embora quando um senhorinho de cabelos brancos arremessou contra ele uma bola de sinuca, com toda força. A bola bateu na testa do jovem, que caiu para trás pesadamente, desacordado.

Seu comparsa fugiu. Quase todos os presentes deixaram a sala. Só ficamos o jovem desacordado no chão, o senhorinho e eu, convencido de que acabava de assistir a algo que era crucial e que eu precisava entender.

O senhor de cabelos brancos, enfim, saiu; fui atrás dele, mas não consegui alcançá-lo. Não sei o que conversaria com ele. Igual, foi naquela ocasião que comecei a pensar o que segue.

Os dois jovens fascistas não queriam nos convencer de suas ideias, nem nos obrigar a professá-las (com 20 adultos naquela sala, eles perderiam qualquer briga). Eles queriam algo pior: queriam nos mostrar com que facilidade nós renunciaríamos ao que pensávamos e ao que nos parecia certo.

Se não fosse por aquele senhor de cabelos brancos, eles ganhariam —não pela força, mas pela preguiça pela qual, em vez de fazer o que é certo por nosso foro íntimo, preferimos fazer de conta que "concordamos".

Desde então, combato os que discordam de mim quanto ao essencial, mas (bem diferente) odeio e desprezo quem tenta me cooptar, para que eu adote um comportamento ou um pensamento de grupo.

Nessa linha, só considero como propriamente imoral qualquer pensamento ou qualquer ação que sejam justificados pela adesão a um grupo.

Muitos anos depois, consagrei minha tese de doutorado em psicopatologia ao mistério que levou centenas de milhares de soldados ou policiais de reserva alemães a se tornarem perpetradores do genocídio, embora eles fossem gente como a gente, nem nazistas, nem antissemitas. A tese será publicada em português no ano que vem pelas Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha, provavelmente com o título "O Grupo e o Mal".

Agora, volto aos bucetas-rosas —chamo assim os boçais brasileiros na Rússia que postaram vídeos em que "zoavam" de mulheres. Provavelmente, tomados um por um, eles discordam do que eles fizeram; eles foram cúmplices da "zombaria" pelo prazer de constituir um grupelho.

O grupo serve para isto: para me autorizar a fazer coisas das quais, sozinho, eu me envergonharia. Pense bem nesse mecanismo; ele é rigorosamente o mesmo para uma fauna variada: dos assassinos do índio Galdino na Brasília dos anos 1990 até os boçais que a cada ano praticam trotes de calouros.

Hélio Schwartsman (na Folha de 30/6) respondeu à minha coluna da semana passada com dois argumentos.

1) Ele acha excessiva minha comparação dos vídeos boçais com uma fotografia de soldados alemães ao redor de uma enfermeira russa enforcada. OK. Tomemos outra foto, de soldados alemães rindo ao redor de um judeu ortodoxo que está sendo forçado a cortar sua barba. Melhorou?

2) A punição deve levar em conta a intenção do réu e o resultado de sua ação. Segundo Hélio, o resultado não foi tão grave. Nisso, ele concorda com o ministro do Turismo brasileiro; eu, não. E espero que os turistas gringos não se sintam liberados por isso. Fala sério, assédio moral não é grave?

Mas OK, vamos à intenção. No caso dos torcedores boçais, ela é, ao meu ver, hedionda. Mas cuidado: não tanto em relação às mulheres russas, que foram "apenas" ludibriadas, quanto em relação a eles mesmos (os próprios bucetas-rosas) e a nós, que eles chamaram como público.

A intenção dos réus foi hedionda porque eles sacrificaram sua própria autonomia moral (serei boçal graças à turma) e quiseram induzir seus espectadores ao mesmo sacrifício (toma uma com a gente e vem "brincar" com as russas, não é?). Funcionou? Bom, muitos se indignaram, mas muitos acharam graça e ainda querem inocentá-los.

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