Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

O amor contra a boçalidade

Romances entre lados opostos são o que resiste de mais humano nas guerras

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Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

O machismo e a boçalidade não são prerrogativas dos brasileiros.

Você se lembra: houve os torcedores brasileiros "zombando" de mulheres russas. Agora, há os russos enfurecidos contra essas mulheres porque, segundo eles, veja só, elas deram mole para "estrangeiros".

Mariliz Pereira Jorge conta que a mulher russa que foi vítima dos torcedores brasileiros (no vídeo postado na internet) "teve a vida vasculhada, foi culpada pelo abuso que sofreu e acusada de envergonhar seus compatriotas".

Mariliz cita uma reportagem da BBC segundo a qual, na Rússia, "garotas, que tiveram contato amistoso com estrangeiros, têm sido alvo de insultos, de ameaças de violência física" —ameaças requintadas, tipo "Vou cortar seu útero".

Os autores das ameaças são provavelmente grupos de russos xenófobos e racistas. Mas a reação me fez pensar em inúmeras fotos tiradas no fim da Segunda Guerra Mundial, na liberação da França e da Itália: as mulheres que, durante a ocupação, foram, não necessariamente colaboradoras, mas amantes ou namoradas de soldados alemães tiveram suas cabeças raspadas e foram exibidas pelas ruas da cidade.

Numa foto francesa, que não esqueço, há cinco mulheres, circundadas por uma multidão que assiste à humilhação delas: estão de cabeça mal raspada, nuas com o corpo pichado, obrigadas a levantar o braço direito na saudação nazista.

Se você quer saber mais sobre este triste capítulo da história da liberação e ver uma pequena, mas boa seleção de fotografias: encurtador.com.br/chP01.

Conheço essas imagens (e outras parecidas, italianas) há tempos. Elas me inspiram, desde minha infância, reflexões, às vezes, contraditórias.

Em algum momento, pensei "bem feito" —elas mereceram sua desgraça. Mas não durou muito. Logo surgiu um mal-estar e a sensação de que, naqueles primeiros dias de fúria depois da liberação, os verdadeiros resistentes (o modelo aqui era meu pai) estavam em casa, pesando seus atos passados e pensando no futuro incerto.

Se eles desfilaram com a bandeira em riste, foi por um dia; eles ficaram pouco na festa e menos ainda foram correr atrás da vingança. Ou seja, os algozes das mulheres eram mesmo resistentes ou apenas boçais de plantão?

Além disso, quem eram essas mulheres? Poucas colaboraram mesmo com os ocupantes. A maioria queria cigarros, café, meias de seda, liberdade de movimento —um mínimo de luxo na miséria da guerra.

Talvez elas jogassem isso tudo na cara dos vizinhos que, de qualquer forma, já não gostavam delas, por elas serem bonitas e de costumes mais livres. E, no fim, os vizinhos se vingaram...

Na cara dos que raspam a cabeça de uma ou outra mulher e as empurram seminuas pela rua, vejo também uma dimensão de ciúmes: vocês preferiram eles quando a gente estava no chão —e agora, hein?

Também leio nos rostos dos homens a babaquice de quem acha que está defendendo legitimamente a honra materna —o corpo dessagrado da pátria. A mulher é a grande metáfora do território nacional, a terra mãe que foi invadida ou estuprada. Logo na primeira estrofe da Marselhesa, fala-se dos ferozes inimigos que vêm "até vossos braços/Degolar vossos filhos, vossas companheiras".

O invasor, aliás, sempre rouba "nossas" mulheres —desde o rapto das Sabinas, até às camponesas levadas como escravas pelos piratas muçulmanos durante a Idade Média.

Percebo, de repente, que mal levo em conta o mais trivial: a possibilidade de que elas tenham simplesmente gostado do alemão com quem namoraram, o qual podia ser um cara legal, meio perdido numa terra ocupada que o odiava, procurando um amor que o salvasse da culpa e do horror da guerra. Ele podia achar nela o perdão e o descanso da retórica belicosa de seu país. E ela podia admirá-lo por ele ser o vencedor, e ainda assim talvez generoso e envergonhado.

Assim que penso nisso, tenho simpatia por essas mulheres, e também pelos soldados que as amaram. No meio do triunfo da boçalidade, talvez ambos fossem movidos a algo que não era uma motivação de grupo, mas um sentimento, um afeto, um gostar-se ou mesmo uma paixão: algo individual, que era só deles.

Esses amores de guerra, que indignam os campos opostos, são o que resistem de mais humano na estupidez grupal das guerras, das xenofobias e dos racismos. Essa é, aliás, a história de Romeu e Julieta.

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