Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Em quem votar?

A democracia representativa talvez seja um sistema já caduco

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

Minha confiança nas pesquisas eleitorais é limitada.

Nas eleições para presidente, um primeiro problema é a pergunta direta "em quem você votará?". O entrevistado pode responder seja para agradar, seja para provocar o entrevistador. Se você gosta de um candidato do qual é de bom tom se envergonhar, pois bem, você mentirá. Ou, inversamente, você poderia declarar seu voto nele só para provocar: e aí?

É nesse aqui que voto —tem algum problema?

A pergunta direta sobre o candidato que escolheremos também diz pouco sobre o que desejamos de fato para nossas vidas e para nossa coletividade.

Um candidato pode ser votado por ser bonitão, por inspirar confiança "imediata" (socorro!) ou por ele torcer pelo mesmo time que a gente.

Agora, mesmo fingindo que a gente esteja a par das propostas dos candidatos e escolha racionalmente as que estão de acordo com as nossas, acontece que nossas ideias políticas são, no mínimo, de três categorias: 1) As ideias que reconhecemos publicamente como sendo as nossas, 2) As ideias que são as nossas, mas que nos envergonham parcial ou totalmente, 3) As ideias que são as nossas, mas que sequer sabemos ou admitimos que temos.

Qual dessas três categorias de ideias seguiremos na hora de votar?

A Folha propôs um ótimo teste para o eleitor encontrar o deputado que o representa mais de perto.

São 20 frases programáticas. Para cada uma, o teste pede que você diga se concorda ou discorda (parcial ou totalmente) e se a questão para você é muito, pouco ou nada importante. Por exemplo, posso concordar parcialmente com uma proposta que seria crucial para o país mas teria pouca relevância para mim --porque não entendo bem ou porque não me concerniria pessoalmente.

Fiz o teste duas vezes. Na primeira, escolhi sem hesitar, com meu lado bem-pensante progressista. Na segunda, levei a coisa a sério, pensando (sozinho) antes de responder: é isso mesmo que quero para mim e para o país? Descobri assim, aliás, que, para mim, muito importantes eram sobretudo as questões que concernem a vida cotidiana do indivíduo.

Por exemplo, "o casamento deve ser sempre entre um homem e uma mulher": discordo totalmente e me importa muito. Ou ainda, "é importante que a escola de meu filho ensine valores religiosos": discordo totalmente e me importa muito. "O aborto, nos casos em que a vida da mulher não está ameaçada, deve sempre ser ilegal": discordo totalmente e me importa muito.

Quando minhas concordâncias ou discordâncias eram parciais, a questão se tornava quase sempre menos relevante.

"Controlar a inflação é mais importante do que ter mais crescimento econômico", concordo —ou discordo— parcialmente. Será que não dá para crescer sem inflação? Justamente por eu não achar que se trate de uma alternativa excludente, a questão se torna menos importante.

De qualquer forma, o formulário de minhas respostas acabou sendo inconsistente. Vista minha posição sobre aborto, casamento gay e ensino religioso, normalmente eu deveria dizer que crescimento é muito mais importante que inflação e aderir aos planos desenvolvimentistas da esquerda.

Outro exemplo, mais embaraçoso, foi "a pena de morte é a melhor punição para indivíduos que cometem crimes graves". Minha resposta rápida era: discordo totalmente, muito importante. Mas, no segundo teste, matutando (ou seja, tentando ativar minhas ideias de categoria 2 e 3), comecei a vacilar: o que fazer com um assassino torturador, que continua encomendando mortes de sua prisão e que não vai mudar". Acabei discordando só parcialmente.

No fim, houve uma pequena série de questões onde me posicionei como um eleitor conservador ou de direita. Por outro lado, concordei totalmente com o Bolsa Família.

Enfim, não sei se sou um caso atípico, mas produzi um formulário que, digamos assim, não entra bem no encaixe: quem mais me representa é uma deputada que compartilha só 70% de minhas ideias. Ela pertence a um partido do qual eu ignorava até então a existência.

Para chegar a deputados de partidos mais presentes no Congresso, a percentagem de concordância de ideias precisava descer para 60%. Mesmo a 60%, pela inconsistência de minhas respostas, eu oscilava entre deputados de partidos bem distantes entre eles.

Como não devo ser um caso único, concluo que a democracia representativa talvez seja um sistema já caduco.

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