Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Maria Bonita está entre nós

O tráfico e o crime continuam exercendo a mesma sedução do cangaço

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

É um traço comum às mulheres e aos homens de minha geração: no mínimo na nossa infância, fomos sensíveis ao charme dos fora da lei.

Passei a aurora de minha idade da razão no cinema Pacini, assistindo a qualquer filme que não me fosse proibido (e a vários proibidos, graças a um lanterninha amigo). Muitos filmes dos anos 1950 eram western, ou, como se diz no Brasil, bangue-bangue, em que todo mundo estava fora da lei, inclusive a maioria dos xerifes.

O bangue-bangue talvez explique, então, dois traços (aparentemente opostos) meus e de meus contemporâneos. Por um lado, somos anarquistas, pois começamos a pensar idealizando figuras que faziam a justiça com suas próprias mãos (ou com seu próprio revólver). Pelo outro, temos uma predisposição para o entendimento marxista do mundo, pois o poder oficial (o xerife) parece ser, quase sempre, apenas o braço armado de um grupo ou de uma casta que se impõem aos outros.

O fora da lei que a gente idealizava podia ser mais justo do que o xerife —o qual, por sua vez, podia ser mais criminoso do que o fora da lei.

De qualquer forma, o fora da lei ideal é um "acossado", solto, em fuga e disposto a matar para defender seu único bem: a liberdade. Falando em "Acossado", aliás, o filme de Godard garantia que, fugindo pela França e matando um policial, nossa vida seria curta, mas ganharíamos uma companheira linda e intensa como Jean Seberg.

Justamente, entre os fora da lei, há os solitários, para quem todos olham com medo e admiração (Shane de "Os Brutos Também Amam"), e há os que, nas margens da lei, encontram um tipo de amor que seria inalcançável para os que não enfrentam a vida juntos, de armas na mão, como Bonnie e Clyde, os lendários Calamity Jane e Wild Bill Hickok —e, claro, Maria Bonita e Lampião.

A excelente biografia de Maria Bonita escrita por Adriana Negreiros ("Maria Bonita - Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço", ed. Objetiva) lembra que o mito do casal cangaceiro nasceu quando os dois ainda estavam em vida e em atividade. A existência cotidiana deles talvez não fosse tão invejável assim, mas (compensação pelas durezas do cangaço) eles já habitavam os sonhos de muitos.

Negreiros dedica páginas (hilárias) à história da tentativa de transformar o casal cangaceiro em garoto-propaganda da Cafiaspirina, com direito a cartaz com Lampião (assassino procurado por todas as polícias) distribuindo drágeas para seus acólitos.

Mas não critico as empresas envolvidas. Afinal, eu mesmo descobri Lampião e Maria Bonita numa celebração de suas figuras: claro, eles estavam já mortos, mas conheci o Carnaval carioca, anos atrás, desfilando na avenida pela São Clemente, num bloco de Lampião e Maria Bonita. Não me sobrou nada da fantasia; até a escopeta de plástico se perdeu em alguma mudança.

Li o livro de Negreiros em duas sentadas, com um tremendo prazer (tremendo é o adjetivo que convém, ao tratar do cangaço). Além disso, a história de Maria Bonita me forçou a pensar nos estranhos e vagos anseios que assombram a mente de todos nós, modernos.

Por que Maria Bonita deixou o casamento com Zé de Neném, o sapateiro pimpão da fotografia que está no livro?

Negreiros escreve: "A famosa violência dos cangaceiros não desestimulava algumas sertanejas a querer entrar para o grupo. Reduzidas a uma vida em que sóis se punham e nasciam sem que nada de extraordinário movimentasse suas existências, muitas moças sonhavam com a rotina de ouro, dança e aventura que permeava o imaginário popular sobre o cangaço".

Uma cangaceira diz a uma candidata: "Você não queira saber o que é dormir no molhado, andar no espinho, subir saltada, correndo, tomando tiro". Tanto faz: "Quando uma jovem decidia se amancebar a cangaceiro, não havia conselho que a fizesse demover da ideia" (pág. 122).

Será que era para conseguir riquezas (as quais, de qualquer forma, ficariam escondidas no árido)? Ou será que a fuga para o cangaço era o grito de rebeldia contra uma vida que parecia insignificante?

Li a história de Maria Bonita pensando o tempo todo em Madame Bovary e até em Anna Karênina —ou seja, como uma contribuição ao difícil entendimento da insatisfação e dos atos aos quais ela nos leva.

Nota: essa insatisfação está longe de ser especificamente feminina. Nesse caso, o privilégio das mulheres é que elas, mais que os homens, conseguem pensar no enigma de nossas aspirações mais abstratas.

Bonnie e Clyde foram contemporâneos de Lampião e Maria Bonita. Bonnie deixou uns poemas que, aposto, Clyde não devia entender muito bem. "The Trail's End", o fim da linha, é o grito comovedor de uma vida encurtada na esperança (falida) de ganhar assim algum sentido.

Negreiros escreve que Lampião "negociava rifles, revólveres e munição com os próprios soldados", cujos vencimentos "eram inferiores ao salário que Lampião pagava aos seus subordinados". Por isso, "vender bala e pistola para cangaceiro era uma maneira de complementar a renda" (pág. 82).

Mas não são tanto esses fatos que deveriam nos parecer familiares. Mais grave e mais inquietante é constatar que o tráfico e o crime continuam exercendo, sobre meninos e meninas, a mesma sedução do cangaço —uma sedução que não é só econômica. Meditar sobre a história de Maria Bonita é urgente.

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