Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

As cassandras e os esparadrapos

Como viver bem sem ter que comprar a falsa ilusão de que tudo vai dar certo no fim?

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A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) deixou 15 milhões de mortos nos campos de batalha. A esse número é preciso acrescentar os 20 milhões de mutilados e desfigurados, que assombraram a Europa durante as décadas seguintes.

Se a gente culpar a guerra pela virulência do surto de gripe espanhola que começou em 1918, as vítimas, na Europa, chegaram perto dos 70 milhões. Este número é próximo da quantidade das vítimas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Os anos 1920 e 1930 (o dito entreguerras) não foram uma época próspera. Os problemas econômicos e sociais se juntaram com o desejo de revanche de quem se considerava injustiçado pela paz no fim da Primeira Guerra: conclusão, as duas décadas foram o berço dos totalitarismos mais sanguinários do século 20, o stalinismo, o nazismo e o fascismo. E, claro, levaram a mais uma carnificina.

Mas o entreguerras foi também uma época raivosamente a fim de viver, tanto quanto a belle époque, que o antecedeu.

Meus avós maternos nasceram no fim do século 19 e estavam (respectivamente) com 16 e 21 anos no começo da Primeira Guerra. Sobreviveram.

Ilustração de Mariza Dias Costa para Contardo Calligaris de 17.jan.2019.
Mariza Dias Costa

Tenho fotografias deles no entreguerras, à beira dos rios de Turim: piqueniques na grama, sempre com uma sanfona, vinho e as moças dançando não só entre elas, mas com os moços, nas primaveras dos anos 1920 e 1930.

Pensei nessas imagens assistindo às duas temporadas de "Babylon Berlin", de Tom Tykwer e outros (Tykwer é o cineasta do maravilhoso "Corra, Lola, Corra").

"Babylon Berlin" é uma série imperdível, mas não acessível no Brasil (nos Estados Unidos, ela está na Netflix), inspirada nos romances de Volker Kutscher e Niall Sellar, que contam a saga de Gereon Rath, um detetive da polícia de Colônia, desde sua chegada a Berlim em 1929.

Voltarei a falar da série quando os leitores puderem vê-la (quando?). Desde já: num primeiro momento, enquanto assistia ao primeiro episódio, pensava que aqueles personagens todos não sabiam que, em dez anos, eles seriam levados por um cataclismo pior do que a guerra que acabava de terminar.

A partir do segundo episódio, pensei ou senti diferente: eles eram todos especialmente tocantes porque talvez, de algum modo, soubessem, pressentissem que seriam varridos ou incinerados dez anos mais tarde.

Será que minha avó, dançando na beira do rio Ticino, pressentia a fome, a miséria, o desastre?

Claro, a vida se dá sempre na proximidade e na iminência da nossa morte. Mas é mais raro que ela se dê na iminência da catástrofe. Será que saberíamos ou pressentiríamos se vivêssemos os últimos anos ou meses antes do apocalipse e do armagedon? Justamente, a Bíblia (Apocalipse 16, 14:16) recomenda que estejamos sempre prontos, que durmamos vestidos, pois é difícil dizer se e quando a batalha começará.

Nos anos 1950 e 1960, no auge da Guerra Fria, eu era adolescente. Lembro-me bem da crise de Cuba, em 1962. Mas será que acreditei na possibilidade de uma catástrofe nuclear?

A sensação da futilidade geral diante da catástrofe iminente é quase sempre acompanhada por uma raiva hedonista: a vontade de roubar um último tango. É possível que Maio de 68 tenha sido também isso: uma saideira para uma geração que cresceu à sombra das armas nucleares.

Mas voltemos à pergunta anterior: será que sabemos detectar os sinais de uma catástrofe iminente? Depois da chegada de Hitler ao poder, alguns fugiram a tempo; outros acharam que tudo continuaria igual, e não seria nada de mais —talvez nem fosse o caso de se revoltar.

Nestes dias, no Brasil, além dos entusiastas do novo governo, há as cassandras e os esparadrapos. As cassandras preveem, no mínimo, um regresso cultural que produzirá mais uma geração perdida: elas se perguntam se não é o caso de desistir do país. Os esparadrapos acham que, no fim, dá para medicar qualquer ferida, vai dar tudo certo, a economia melhorará e a estupidez ideológica será jogada fora, junto com os cartazes da campanha eleitoral.

Não sou nem cassandra nem esparadrapo. Mas a experiência da psicanálise me ensinou a nunca dizer "não se preocupe, vai dar tudo certo".

Geralmente, não dá tudo certo. E a questão mais importante, na iminência de uma catástrofe, é sempre a mesma: como viver uma vida interessante e prazerosa sem ter que comprar a falsa ilusão de que tudo vai dar certo no fim?

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