Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Anna Verônica Mautner

Psicoterapeuta e psicanalista, ela foi grande na arte de ser amiga, o que não é pouco

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Anna Verônica Mautner morreu na quarta, dia 30 de janeiro. Ela era minha amiga de 30 anos.

Na semana anterior, internada, ela mal abria os olhos, mas nós, os inúmeros amigos que a visitávamos no hospital, tínhamos a sensação de que ela talvez nos ouvisse, de uma maneira ou de outra; achávamos que ela reagia a nossas palavras. Ela te reconheceu? Acho que ela apertou minha mão quando a chamei alto"¦

O fato é que, no dia em que ela morreu, eu cheguei decidido a lhe sussurrar no ouvido "Anna, me dê um sinal, aperta minha mão, só isso; eu te carrego fora daqui, e você vive um pouco mais —o tempo de mais uns papos, OK?". Mas a respiração dela era curta, e o sono, profundo, distante. Só me restou pegar na mão dela e sussurrar: "Ciao, amiga". Disse "ciao" mesmo, em italiano.

Você me perguntará: Como assim? Com tanta coisa acontecendo, você nos fala de um luto privado?

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

O fato é que a perda de Anna é uma perda pública, e não apenas por ela ser amiga de muitos e muitas.

Começo pelo fim. A última semana, em que Anna ficou internada e inconsciente, ela realizou uma morte clássica, em que o fim da vida é um tempo pacífico, tranquilo, em que parentes e amigos vem se despedir, ao redor do leito de morte.

Esse foi o ideal dominante da morte até o fim do século 18: a morte era suportável porque a comunidade de amigos e parentes se despediria de nós e continuaria lá: graças a eles, de uma certa forma, sobreviveríamos. Nos últimos dois séculos, a imagem dominante da morte é uma experiência individual, solitária e intoleravelmente final: a gente acaba, e tudo acaba com a gente. Isso, se não procurarmos a consolação de alguma fé --num deus ou num além.

Na sua última entrevista, no "Metrópolis", da TV Cultura, Anna dizia a Cunha Júnior que ela não contava com o além para aliviar a experiência da morte que se aproximava.

Tenho um carinho especial para quem resiste à ilusão apesar da idade avançada. Meu pai pediu que meu irmão e eu lhe prometêssemos não chamar um padre nem se ele pedisse, pois esse pedido seria fruto de uma covardice de última hora, que não representaria sua vida e não expressaria seu pensamento.

Quarta de tarde, depois da morte de Anna, Ivan Finotti me telefonou: ele estava escrevendo o obituário para a Folha e sabia o essencial da vida de Anna, inclusive pelo livro dela, recente, "Fragmentos de uma Vida" (ed. Ágora): a chegada ao Brasil aos três anos, da Hungria, logo antes da Segunda Guerra, a infância na Lapa, a sociologia na USP, um tempo de jornalismo e depois uma longa carreira de psicoterapeuta, acabando com uma formação psicanalítica —tudo com uma pitada constante de irreverência e heterodoxia.

Mas Ivan tinha mais uma pergunta: no que ela foi realmente grande?

Anna foi uma psicoterapeuta e psicanalista forte, corajosa, sem papas na língua. Mas não deixou uma obra. Gostava de escrever crônicas. Mesmo assim, como ela disse certa vez a Jô Soares, ela sempre preferia falar a escrever.

Ivan esperava minha resposta. Pensei que talvez Anna gostasse de ouvir que foi grande na cozinha. Vou dizer, agora que ela não me ouve: a cozinha não era lá grande coisa. O que nos levava a nos reunir na casa dela não era a comida, era outra coisa.

Anna não gostava de festas; ela oferecia jantares ao redor de sua mesa redonda —seis, oito pessoas no máximo.

Durante os anos em que morei em Nova York, eu passava em São Paulo uma semana por mês e, a cada vez, jantava na casa de Anna. Foi ao longo desse jantares que amadureceu minha decisão de voltar ao Brasil e, especificamente, a São Paulo.

Porque, ao redor da mesa de Anna, por algum milagre que ela operava, ouvir era sempre tão importante quanto falar. Os jantares na casa da Anna podiam chegar a conclusões catastróficas para o futuro do país e do mundo, mas resgatavam sempre a confiança de todos na possibilidade de conviver, conversar e debater.

Anna, nos últimos tempos, ia regularmente até o Pico do Jaraguá. Dizia que era por causa do ar puro. Eu acho que era pela visão da cidade de São Paulo do topo. A cidade, imensa, diversa, viva, cosmopolita, curiosa, global era o espelho da própria Anna.

Ivan estava ainda esperando: no que ela foi grande, então? Respondi, enfim: na arte de ser amiga. E senti a necessidade de completar: cuidado, não é pouca coisa. Ivan entendeu e confirmou: não, não é pouca coisa.

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