Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Qual é o ar dos tempos?

Vivemos um clima de raiva e ódio, sem desejo de debater sobre as diferenças

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Para um psicoterapeuta, só é legítimo diagnosticar seus pacientes (e, em tese, esse diagnóstico é sempre confidencial).

Casos extremos, aliás, colocam verdadeiros dilemas morais: se você fosse o psicanalista de Adolf Hitler em 1933, alguns diriam que você só poderia ficar calado; outros, que teria o dever moral de vir a público e anunciar que seu paciente sofre, sei lá, de um transtorno da personalidade esquizotípico, o que o torna estupidamente crédulo de teorias conspiratórias etc.

Um debate parecido, aliás, aconteceu recentemente nos Estados Unidos, quando um grupo de psiquiatras publicou um livro explicando por que Trump é inapto para a função de presidente.

Eu tendo a pensar que, de qualquer forma, o diagnóstico de Hitler teria um efeito mínimo na sociedade alemã dos anos 1930.

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

Muitos (a maioria) estavam esperando justamente os latidos de Hitler para poder mergulhar na aventura coletiva que lhes permitiria destruir o mundo e a eles mesmos sem muitos problemas de consciência.

Ao diagnóstico de Hitler, eles só reagiriam incluindo o terapeuta na lista dos inimigos. A psicanálise, de qualquer forma, não era uma ciência judia?

Enfim, para entender o mundo, em vez de propor diagnósticos aventurosos de indivíduos que não são nossos pacientes, melhor tentar interpretar o que os franceses chamam de “l’air du temps”, ou seja, o ar ou o espírito dos tempos, algo que a gente, por assim dizer, respira, querendo ou não.

O ar dos tempos é como um microclima que favorece certa vegetação —ou que, misteriosamente, faz com que ela vingue, sem que se entenda bem quem levou até lá tal ou tal outra semente.

Vamos com calma. A constatação que segue vale sob todos os céus do Ocidente, incluindo o Brasil: à primeira vista, hoje, o ar de nossos tempos se apresenta como um clima de raiva e ódio, sem sequer o desejo de debater sobre as diferenças. 

Fato marcante, essa raiva se declara sem freios morais básicos, sem falsos pudores. Ela é explícita: “concorde comigo ou morra logo” —as grandes empresas missionárias, islâmicas ou cristãs, eram assim: converta-se ou morra.

O cara que festeja o exílio de um deputado ameaçado de morte ou o maluco que explica que é preciso combater pessoas e não ideias falam da boca para fora, como se diz? Ou perderam as estribeiras da decência? No fundo, para medir o ar do tempo, tanto faz.

Não importa muito saber o que o futuro candidato Bolsonaro pensava quando elogiou publicamente um torturador ou um miliciano. Será que ele desejava mesmo um câncer a uma adversária política? E, já eleito, o que ele pensava quando elogiava um ditador estuprador de meninas? Tudo isso era e é apenas um “discurso de campanha”? 

Tanto faz: o que importa, para entender o ar dos tempos, é que a raiva, justamente como discurso de campanha, foi coroada com sucesso. Declarações indecentes não produziram asco, mas ampla aprovação.

A expressão de uma raiva sem inibições morais (ou seja, uma raiva psicopata) ganhou uma eleição. Pelo menos, enfim consigo entender o que meu pai, um liberal, queria dizer quando me contava que fora antifascista e resistente simplesmente porque achava os fascistas intoleravelmente vulgares.

Mas voltemos. Raiva psicopata é apenas a descrição do sintoma, não é o diagnóstico, longe disso.
Como a raiva que está no ar dos tempos escolhe seus inimigos? Será que a modalidade de escolha pode facilitar a quebra de freios morais?

Ao longo do últimos 30 anos, o debate entre ideias e posições políticas foi murchando. Os adversários são cada vez menos opositores políticos com pontos de vista diferentes: são inimigos ocultos, conspiradores.

E, é claro, com quem trama nas sombras não há como discutir —só resta aniquilá-lo.

As teorias conspiratórias existem desde quase sempre. Os totalitarismos do século 20, aliás, se serviram delas para que seus inimigos só merecessem ser aniquilados, por serem conspiradores ocultos.
Mas, nos anos 1960, as teorias da conspiração se multiplicaram (um efeito talvez do longo inverno da Guerra Fria) e, a partir dos 1990, com a internet, elas se proliferaram.

Então, para avançar no nosso diagnóstico, o que são as teorias conspiratórias? Será que elas só servem para transformar os adversários em inimigos que tramam nas sombras, em pessoas que precisam ser,  portanto, liquidadas? Ou têm outra função? Volto ao assunto na semana que vem.
 

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