Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Contardo Calligaris

Bacante

Construímos o erotismo ao redor de contradições: um corpo que fascina e assusta

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

De 1887 a 1894, Sadi Carnot foi presidente da França. Na época, havia um movimento nacionalista a favor de mais guerra com a Prússia, o escândalo do canal do Panamá (que arruinou uma série de pequenos investidores), e, enfim, o anarquismo —o próprio Carnot foi assassinado por um anarquista.

Conheço um pouco a história da França. Mas, para saber quem era presidente de 1880 a 1890, tive que consultar as fontes. Lembrava vagamente: Périer? MacMahon? Grévy? De nenhum deles eu me lembrava sequer uma ideia. Só sabia que MacMahon foi presidente da República e monarquista. Em geral, a Terceira República foi para a lata de lixo da história.

Depois de assistir a "No Portal da Eternidade", de Julian Schnabel, sobre os últimos anos de Vincent van Gogh, encomendei a maravilhosa edição crítica das cartas de Van Gogh (seis volumes, pela Actes Sud). Reencontrei minha emoção de quando, aos 13 anos, li as cartas numa tradução italiana, na biblioteca de casa.

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

Eu encontrava, nas cartas, uma loucura do desejo a qualquer preço, que me fascinava. Não queria ser pintor, mas sonhava em desejar como Van Gogh, seja lá o que meu desejo viesse a ser.

Moral da história: eu me lembrava das cartas de Van Gogh, dos presidentes da França naquela época, nada.

Bolsonaro disse, no último domingo (7), que não perderia tempo comentando os resultados Datafolha sobre a aprovação de seu governo.

A frase do presidente me inspirou: será que eu e outros milhares com o hábito de pensar e comentar o cotidiano deveríamos perder tempo com os factoides ideológicos produzidos a jato contínuo por boa parte do governo atual?

Aos 11 anos, eu via jovens direitistas zoarem dos esquerdistas da escola: Mussolini era socialista! Rever essa cena hoje, entre pessoas que usam calças compridas, me dá uma certa agonia. O corporativismo fascista era a favor dos trabalhadores? Ou contra? Além de Mussolini, Salazar, Franco e Vargas também eram de esquerda? E Stálin? Ele adorava o Estado tanto quanto Hitler; era de direita ou de esquerda? Questões inúteis e infantis. Como diziam os fascistas, "Chi se ne frega?".

Mas tem mais: a ditadura foi ditadura? O golpe de 64 foi golpe? Existe disforia de gênero? Que preguiça.

Uma verdadeira questão moral: em 1889, o que seria mais certeiro e mais relevante? Comentar uma carta ou um quadro de Van Gogh, ou discutir com Sadi Carnot e suas leis repressoras do anarquismo?

No sábado, visitei a exposição de Regina Parra, na Anexo Galeria Millan, em São Paulo (dura até dia 30/4, não perca). Das nove pinturas (óleo sobre papel), oito são corpos femininos em recortes que nos deixam sem saber se são corpos que sofrem ou que gozam.

Título da exposição: "Bacante". As bacantes, seguidoras do culto de Dionísio, que oficiavam em cerimônias orgiásticas, eram, pelo que sabemos, bem toleradas na Grécia antiga (Eurípides montou "As Bacantes" em 405 a.C). Quando, 200 anos depois, o culto de Dionísio chegou a Roma, os bem-pensantes não aguentaram: era insuportável encontrar aqueles grupos com tamborins e flautas, dançando e transando, nas esquinas da cidade. Tito Lívio, o historiador, narrando a indignação urbana, parece nosso presidente incomodado com o BloCU: imagine o episódio golden shower com a agravante que eram mulheres mandando no show.

Enfim, as bacantes foram o primeiro e talvez único grupo religioso proibido e perseguido em Roma. Elas são as antepassadas do corpo feminino tentador que foi odiado e rechaçado ("a porta por onde o mal entra", dizia Tertuliano) desde os primeiros séculos do cristianismo. Elas são as antepassadas das mulheres que foram queimadas e enforcadas em plena Renascença, por "bruxaria".

Os quadros de Parra são uma visão perfeita e comovedora do corpo feminino que nos é legado por essa história. Um corpo sofrido que não deixa de ser o protótipo do gozo. Um corpo que é preciso cobrir e descobrir, coibir e libertar —para afastar a tentação e para ser tentado. Um corpo que fascina e assusta, que amamos livre e queremos dominar.

Que ninguém se preocupe excessivamente: construímos nosso erotismo ao redor dessas contradições. E continuaremos fantasiando assim: o feminino não vai mudar de lugar tão cedo.

Mas o que poderia mudar se parássemos de perseguir as mulheres que desejam?

Por exemplo, o ministro Barroso disse poucos dias atrás: "Se homens engravidassem, aborto já estaria resolvido há tempos".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.