Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

O Brasil no elevador

À força de querermos ser malandros, acabamos sendo todos otários

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Meu consultório está no mesmo prédio há mais de 35 anos. É um antigo flat, com dois subsolos de garagem, 18 andares de conjuntos e um espaço coletivo, no 19º.

Mais da metade das unidades pertence a condôminos moradores, o resto é alugado.

Durante muitos anos, os dois elevadores sociais tinham um único botão de chamada —tanto fazia se você quisesse subir ou descer. Você chamava e, frequentemente, parava um elevador que levava alguém na direção oposta à que você desejava; você abria a porta e perguntava: "Sobe?"; "Não, desce"; "Desculpe".

Alguns anos atrás, modernizamos os elevadores, que se tornaram "inteligentes". Agora, a cada andar (salvo o 19º e o segundo subsolo), há dois botões de chamada, diferenciados por setas, uma para subir e uma para descer: em tese, você aperta aquele que corresponde à sua intenção, e ele se torna luminoso até que chegue o elevador que sobe ou desce, como desejado.

A gente imaginava que, graças a essa mudança, dispensaríamos as paradas desnecessárias. Economizaríamos a energia e o tempo de todos, tanto dos que estivessem no elevador (e que não seriam mais parados inutilmente) quanto dos que chamassem (e que só entrariam no elevador certo).

Não foi nada disso. A grande maioria dos usuários, para chamar o elevador, continua apertando os dois botões.

Ilustração
Luciano Salles

Num primeiro momento, pensei que o problema fosse cognitivo: talvez muitos não entendessem os dois botões e as duas flechas. O governo, pensei, deveria tomar providências para melhorar a orientação espacial dos brasileiros e sua compreensão das formas geométricas. Por exemplo, o governo poderia sugerir que as crianças cantassem o hino nacional ou rezassem o Pai Nosso a cada dia. Também pensei que certamente devia haver muitos originários de Norte e Nordeste que passaram o ensino básico lendo Nietzsche ou estudando "O Capital" de Marx, enquanto deveriam ter aprendido coisas mais práticas.

De qualquer forma, antes de sugerir medidas pedagógicas drásticas, eu pesquisei. Comecei a entrevistar todos os que paravam o elevador no qual eu estava, aparentemente sem saberem se ele estava indo para cima ou para baixo. Explico o protocolo de experiência.

Eles invariavelmente abriam a porta e perguntavam: "Sobe ou desce?". Eu respondia: "Mas você quer subir ou descer?". Uma vez recebida a resposta, eu saia do elevador, apontava para os botões e explicava: "Esta seta é para pedir o elevador que sobe etc.".

Resultados de um ano de pesquisa: 48% dos entrevistados não entendiam (ou diziam que não entendiam) e achavam que o sistema era uma burrice porque o que eles queriam era pegar um elevador e que esse os levasse para onde precisavam ir, "pouco importa se o elevador está subindo ou descendo". Eu tentava explicar, mas talvez o hino, o Pai Nosso e a abolição do ensino de filosofia surtissem mais efeito.

Outros 12% achavam que as duas setas eram um truque ou um complô para privá-los temporariamente de elevador; 37% declaravam querer parar o primeiro elevador que passasse, e ponto: se eles pudessem, subiriam em qualquer elevador e o orientariam para cima ou para baixo segundo suas necessidades, sem sequer levar em conta a vontade de quem já estava na cabine.

Sobram 3% que só me olharam como se fosse um louco e não disseram nada.

Entre os usuários, 79% não tinham sequer pensado no fato de que seu comportamento (apertar sempre os dois botões) produzia um gasto de energia supérfluo (elevador parando e reacelerando sem necessidade) e uma perda de tempo tanto para os que já estavam no elevador quanto para eles, que o chamavam.

Mesmo depois dessa explicação, 54% comentavam que nada mudaria: o que eles queriam era que um elevador parasse para eles. Esses mesmos 54%, aliás, costumavam entrar no elevador mesmo que ele estivesse indo na direção oposta à desejada por eles, "para evitar mais atrasos".

Por ignorância ou por não admitir que há coisas que são de todos e para todos, o Brasil avança como os elevadores do meu prédio —no desperdício e na irracionalidade, como quem acha que ganhou terreno, mas de fato só ganhou os metros suficientes para obstruir um cruzamento ou tornar impossível o atravessamento da rua. Moral da história: à força de querermos ser malandros, acabamos sendo todos otários.

Na semana próxima estarei longe dos elevadores, viajando. Volto na quinta, dia 2 de maio.

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