Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

O difícil é ser razoável

Final em prol do diálogo é um dos motivos por que amo 'Game of Thrones'

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Domingo passado terminou “Game of Thrones”. A HBO está preparando uma série sobre tempos longínquos, que antecedem os fatos narrados até agora. Vários fãs (alguns ilustres, como o escritor Stephen King) pedem que o canal nos conte as aventuras de Arya Stark, que foi para o Oeste desconhecido.

Enfim, há uma petição de insatisfeitos, que reivindicam outra última temporada, com um desfecho diferente. Mas tendo a pensar que todos os fãs estão sobretudo tristes com o fim da saga e querendo mais.

Quanto a mim, gostei do final e da “moral” da fábula. A série inteira poderia introduzir um curso de filosofia política para mostrar que, sim, a história é um conto de clamores e furores, sem sentido algum, e que ninguém está no comando, ainda menos deus, mas, às vezes, a experiência, o cansaço e talvez o fedor dos cadáveres, todos juntos, podem levar os melhores a sentar-se e serem razoáveis.

Ilustração
Luciano Salles

Faz parte dessa moral da fábula a ideia de que sermos racionais e querermos o bem é fácil e dá quase sempre errado: o difícil, mas que pode dar certo, é sermos razoáveis, ou seja, capazes de negociar compromissos entre projetos diferentes ou mesmo opostos.

Um dos efeitos mais destrutivos da corrupção na política é o de nos levar a crer que qualquer negociação esconde uma negociata. Os extremismos adoram e promovem essa nossa desconfiança —para eles, todo político deve ser ladrão e ser “razoável” significa apenas trair suas convicções e se vender. 

Para eles, o toma lá dá cá só pode ser um jogo de corrupção, nunca a lógica normal de conquistas e renúncias num diálogo com outros que pensam diferente.

Aviso urgente: é bom descartar as maçãs podres, mas é necessário recuperar logo a confiança nas negociações entre forças políticas, por mais que o resultado não seja nunca inteiramente o que desejamos.

Quase sempre, um surto autoritário é precedido pela queixa de que o país seria “ingovernável” e o Congresso, por exemplo, uma espelunca de ladrões.

Os responsáveis pelos surtos autoritários, em geral, criam a doença e o remédio. Ou seja, participam alegremente da aparente corrupção generalizada para depois administrar o que apresentam como amarga e necessária medicina.

Além do final em prol do diálogo, há uma outra razão que me fez amar “Game of Thrones”. Talvez essa seja a última série que mobilizou milhões de espectadores todos no mesmo horário.

Na segunda metade dos anos 1950, os apocalípticos diziam que, com a invenção da TV, a gente não sairia mais de casa —cada núcleo familiar ficaria hipnotizado diante do aparelho, sem nem sequer conversar. A realidade, inicialmente, foi outra: como poucos possuíam uma TV, as pessoas saíam, à noite (na Itália era na quinta-feira, se não me engano), para se reunir em bares e botecos e assistir juntos a “o” programa, que era “Lascia o Raddoppia?” (você abandona ou dobra a aposta?), um quiz que se tornava objeto de comentários e conversas acaloradas pela semana inteira.

Algumas grandes séries, nos anos 1990, nos EUA, funcionaram um pouco assim: havia o dia de “Família Soprano” e as conversas do dia seguinte. O Brasil é um caso à parte —a novela “das oito” da Globo ainda é um espetáculo diário, ao qual muitos assistem no mesmo horário e sobre o qual no dia seguinte se comenta e se discute. Pelo horário, eu não consigo ver a novela, mas leio os comentários e assim participo em parte do espírito do tempo nacional.

A novela brasileira resiste, mas, em matéria de séries, “Game of Thrones” foi a exceção. Hoje, cada um vê a série que quer, quando quer. A troca entre espectadores, no máximo, é uma recomendação: achei uma que você vai gostar, não vou te dizer nada para não estragar etc.

O streaming acaba com os efeitos conviviais do audiovisual: à diferença do que acontece no cinema, cada um vê “seu” filme sozinho, e, à diferença da televisão, não tem programa comum para todos.

Agora, no Brasil de hoje, talvez a gente não sinta a falta do programa comum na TV e do debate do dia seguinte. O governo já é um show com mais de um episódio por dia. E nem sempre o debate é chato e polarizado (ou seja, inútil). Último exemplo: o debate na própria base do presidente sobre as manifestações convocadas para dia 26. Concordo com Janaina Paschoal, mas acho todas as posições interessantes —quer dizer, todas as que são capazes de dialogar.

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