Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Os debates e os silêncios

Quando as pessoas se falam, descobrem que concordam mais do que discordam

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Na Sexta-Feira Santa, assisti (online) ao debate entre Jordan Peterson e Slavoj Zizek (legendado).

Peterson é um psicólogo clínico de talento, autor do best-seller mundial “12 Regras para a Vida” (Alta Books). Ele pensa sem se preocupar com os clichês “progressistas” de nossa época e seduz pela 
coragem de sua sinceridade.

Zizek é um filósofo, prolífico e às vezes genial, traduzido no Brasil por várias editoras. Ele pode ser identificado  como “progressista”, mas tampouco se preocupa com os clichês de nossa época.

Peterson e Zizek têm em comum um interesse pela psicanálise (Peterson por Jung, Zizek por Freud e Lacan) e, se não uma fé, ao menos uma “inquietação” cristã.

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

O título do debate —“Felicidade: Capitalismo contra Marxismo”— não foi escolhido por eles, pois ambos têm pouca simpatia por vidas orientadas pela procura da “felicidade”.

Resultado do debate: quando as pessoas se falam, não dá Fla-Flu, pois elas descobrem que concordam mais do que discordam e, mesmo quando discordam, é mais sobre os meios do que sobre os fins.

Por exemplo, que sejamos de esquerda ou de direita, queremos que todos tenham uma vida decente, a discórdia é sobre os meios para chegar lá.

Como João Pereira Coutinho comentou na Ilustríssima de domingo passado, houve 
debate, mas não combate

Um espectador otimista poderia concluir que a oposição entre marxismo e capitalismo não faz mais sentido: a famosa “terceira via” entre capitalismo e comunismo ganhou os corações e as mentes de todos nós. Somos social-democratas e somos instigados ao ódio e à gritaria por aproveitadores que nos transformam em cachorros para luta. Vai lá, mata o filho da puta, que apostei em você.

Num momento do debate, Zizek quis entender a quem e ao que Peterson se referia quando falava de “marxismo cultural” (que é um bicho que vinga até nos trópicos). Entendi assim que o apelido “marxismo cultural” designa o politicamente correto e a política das identidades (étnicas, sexuais e de gênero) —todas preocupações que não têm rigorosamente nada de marxista. 

Peterson e Zizek, aliás, concordaram na recusa da política das identidades: para se engajar politicamente, 
haveria “razões” maiores (mais sérias?) do que sexo, gênero ou etnia. Por que essa antipatia espontânea deles pela política das identidades?

Acontece que, no debate, Peterson e Zizek tiveram uma outra convergência inesperada: ambos descartaram com suficiência a ideia de que a procura pelo prazer tivesse qualquer relevância para a política dos humanos.

Ora, a política das identidades tem uma certa relação com o registro do prazer, porque muitas identidades (sobretudo de sexo e gênero) se constituíram como identidades de defesa: reações contra a repressão do desejo e dos prazeres de seus membros.

Você duvida que a política das identidades seja uma reação contra a repressão?

OK, um exemplo. Na quinta passada, o presidente Bolsonaro declarou que o Brasil “não pode ser o país do turismo gay”. Tudo bem, o país é muito rico e, à diferença da Espanha e da Holanda, por exemplo, não precisa dessa fonte de renda. Agora, a frase bastaria para entender o que é uma identidade homossexual como prática de defesa. Mas continuemos.

O presidente acrescentou que se alguém “quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. Talvez a venda de meninas para turistas compense as perdas do turismo gay, certo? O futuro Museu da Imagem e do Som, em Copacabana, poderia, aliás, ser transformado de volta em boate (o antigo Help), ponto de encontro de meninas e gringos.

As mulheres (outra identidade de defesa) protestaram por se sentirem e serem oferecidas como iscas para turistas.

Mas a verdadeira repressão do desejo feminino não estava na grosseria do presidente; estava em algo que faltou nas considerações dele sobre turismos sexuais. Os agentes de turismo do exterior devem estar esperando um sinal, verde ou vermelho.

O presidente não disse nada das mulheres que viriam ao Brasil para encontrar uma boa transa. Nesse campo, o Caribe (até Cuba) se dá muito melhor que a gente. Será um problema dos homens brasileiros? Um excesso de evangélicos?

Não sei, mas o âmago da misoginia está no “esquecimento” do turismo sexual praticado pelas mulheres, como se não reconhecêssemos que existe um desejo feminino e que ele pode ser tão cru, direto e forte quanto o masculino.
 

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