Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu

Quem é conservador?

É preciso saber o que cada um quer manter ou reformar

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Há muitas coisas que gostaria de preservar, embora não todas. Há muitas coisas que gostaria que mudassem, embora não todas. E há muitas coisas contra as quais reajo, desejando que o mundo volte atrás no tempo. Mas parece que reacionário, hoje, não designa quem reage, mas o simétrico de revolucionário, ou seja, revolucionário quer que tudo mude, reacionário quer que tudo volte para trás.

Não sou (acho que nunca fui) revolucionário. Na verdade, revolucionários são raros. A maioria é reformista: quer mudar algumas coisas, mas não tudo. Uma outra maneira de diferenciar revolucionário de reformista: revolucionário quer que mude o que para ele é a engrenagem central da máquina social (por ex., abolir a propriedade privada), enquanto reformista se preocupa com coisas parciais, mas que lhe parecem decisivas na vida concreta das pessoas e na sua própria (menos desigualdade, escola e saúde públicas de qualidade etc.).

Um reformista pode ser um conservador, enquanto o revolucionário, em tese, não é. Melhor dito, um revolucionário não é conservador até chegar ao poder, aí ele só quer se conservar no mesmo.

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

Em geral, quando tento me definir —por exemplo, no diálogo com um leitor— começo declarando que sou liberal e sempre fui, até quando, nos anos 1960-70, eu era um militante de esquerda. O adjetivo tem sentidos diferentes segundo as culturas, portanto, explico: para mim, liberal significava (e ainda significa) que 1) o indivíduo é um valor maior do que qualquer coletividade ou grupo (nação, partido, família, religião, torcida etc.), 2) não acredito que uma sociedade igualitária seja possível ou mesmo desejável, mas me parece certo que a sociedade garanta que todos tenham oportunidades comparáveis. Ou seja, um filho de ricos entra em Harvard porque os pais fazem uma doação de 5 mi de dólares; tudo bem, mas um pobre deve poder entrar por mérito, com bolsa integral.

O segundo adjetivo que me qualifica, depois de liberal, seria reformista —sempre na direção da maior liberdade individual possível e da solidariedade necessária para que haja oportunidades comparáveis para todos.

Mas, como qualquer reformista, eu também sou conservador, pois há e sempre houve coisas que eu quero preservar. Alguns anos atrás, João Pereira Coutinho escreveu o ótimo "As ideias Conservadoras” (Três Estrelas). Ele notava que os conservadores preferem valorizar o que já está lá (minimamente comprovado) em vez de apostar no desconhecido. De fato, os revolucionários têm uma confiança perigosa na possibilidade de criar um mundo e um homem “novos”, e eu, como psicanalista, desconfio das utopias radicais.

De qualquer forma, conservador e reformista são termos abstratos: para entender de que se trata, é preciso saber o que cada um quer conservar ou reformar. Pode haver reformadores de direita e conservadores de esquerda. E mesmo casos incertos.

Como também evocava Coutinho, habitualmente, os conservadores querem preservar a família e a religião — sobretudo porque, assim entendo, são instituições que tendem a garantir uma certa permanência dos valores compartilhados. 

O problema aqui é qual é o relógio do tempo que gostaríamos de parar. 

Eu, por exemplo, concordo que a família se revelou até agora imprescindível na reprodução dos humanos.

Mas gostaria de preservar a família, não digo da república, mas do primeiro império romano, antes que os cristãos, tornando-se a ferro e fogo religião dominante, decidissem inventar a dita "família cristã". 

Para a religião, mesma coisa: gostaria de preservar o paganismo grego ou romano ou, no mínimo, a situação variável e animada de quando o apóstolo Pedro pregava nas praças competindo com Simão Mago. Desse ponto de vista (o do tempo), portanto, sou muito mais conservador do que Edmund Burke.

Até porque considero que a religião que ele queria preservar (o cristianismo assustador de antes da revolução francesa) contém em si os germes de uma tendência perigosamente revolucionária da qual o próprio Burke não gostava: o cristianismo, missionário e exclusivista, sonha com seu totalitarismo.

Assista a “Divino Amor”, de Gabriel Mascaro, que apresenta a utopia negativa de um Brasil evangélico num futuro bem próximo. No filme, não há planos fechados: a expressão singular do indivíduo sumiu. Com ela, obviamente, sumiu toda a cultura, substituída por um livro só.

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