Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu

Ofensores e ofendidos

Cresci convencido de que o cristianismo fora religião perseguida; a história é outra

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Viajei pelo sul da França e fiz uma romaria por lugares emblemáticos para meus pensamentos atuais. 

Nos últimos tempos, leio muito sobre a história do cristianismo. Tento recuperar o tempo perdido, pois acabo de descobrir que a versão na qual acreditava até ontem era falsa. 

Cresci convencido de que o cristianismo fora uma religião perseguida —ou seja, os cristãos, embora todos 
generosos como Cristo, teriam sido caçados e massacrados pelos pagãos, que não gostavam dessa nova religião porque ela dava dignidade e importância aos humildes.

A história que descubro é outra: o paganismo era tolerante e aberto à convivência dos deuses de todos. Roma, como se sabe, nunca impunha seus deuses aos povos conquistados —por sabedoria prática (venerem quem quiserem, contanto que paguem os impostos) e, mais ainda, porque o paganismo é por essência plural: se meu vizinho venera um deus que cura rinite, vou incluí-lo em minhas preces, sobretudo no inverno. 

Ilustração
Luciano Salles/Folhapress

Ao contrário disso, o Deus cristão era exclusivista (você não terá outro deus fora de mim) e missionário (“amar” o próximo significava convertê-lo, afastá-lo de seus deuses).

Missionarismo com exclusivismo é uma receita que leva qualquer um para intolerância e violência extremas. Foi o caso do cristianismo, do islã e do comunismo.

Nas últimas horas da tarde, Toulouse, rosa escuro por causa dos tijolos com os quais todo o centro foi construído, pega fogo. A própria beleza da cidade parece lembrar assim, ao fim de cada dia de sol, o 
suplício dos que lá foram queimados na fogueira, vítimas da intolerância religiosa.

Visitei Toulouse pela primeira vez 30 anos atrás, com meu amigo Jean Bergès, tolosano. Foi ele quem me mostrou a praça du Salin, onde, em 1616, foi torturado e queimado Giulio Cesare Vanini, um filósofo, nascido na Puglia (hoje Itália), de quem é difícil dizer se foi supliciado por suas ideias (que contêm pitadas de panteísmo e materialismo) ou pela liberdade de seus costumes sexuais. 

Em 2007, até que enfim, foi colocada uma placa na praça du Salin, em memória de Vanini e dos “pensadores precursores das Luzes, vítimas do obscurantismo, que estudaram ou ensinaram em Toulouse” (a lista inclui Giordano Bruno).

Bem antes de Vanini, Toulouse foi a capital dos cátaros, contra os quais, no século 13, o papa Inocêncio 3° desencadeou uma cruzada genocida. 

Ficou famosa a frase de seu delegado quando, a entrar em Béziers, os soldados lhe perguntaram como eles reconheceriam os cátaros (visto que na cidade também havia cristãos papistas): “Matem a todos”, ele disse. “Deus reconhecerá os seus.” É difícil dizer melhor a indiferença pela vida concreta (dos outros) que é produzida pela crença num além.

Como os gnósticos dos primeiros séculos, os cátaros acreditavam que se chega a Deus pela razão e pelo conhecimento, não pela fé. Também, embora cristãos, acreditavam na existência de dois deuses, um mau, o “demiurgo” (responsável pelo mundo material), e um bom, o deus das almas.

Mas a vida concreta dos cátaros era bem comportada. Eles viviam ansiosos por se reencarnar cada vez mais longe da carne e perto do espírito.

Esse não era o caso de Vanini em 1600 —ele era, ao mesmo tempo, um espírito livre e um libertino.

Sentei na praça do Capitólio com amigos que não via há anos. Eles davam notícias do movimento e do pensamento libertinos na França de hoje. Evocaram Vanini, justamente, para explicar algo que lhes parecia óbvio: para eles, sem a libertinagem sexual dos séculos 17 e 18, as Luzes sequer apareceriam na história do Ocidente —ou seja, a liberdade nos costumes sexuais teria sido (e ainda seria) a condição da liberdade do pensamento.

Me lembrei de que Diderot, no começo de “O Sobrinho de Rameau”, escreveu que ele gostava de deixar sua mente vaguear, entregue à sua própria “libertinagem”, e acrescentou que seus pensamentos eram suas “rameiras”.

Nessa altura da conversa, do outro lado da praça, um pequeno grupo de jovens começou uma pregação por megafone que nos prometia que seríamos salvos se só deixarmos Jesus nos amar. 

Se a comunidade libertina tolosana começasse uma orgia na praça do Capitólio, isso ofenderia algum maluco, que logo poderia chamar a polícia. Entendo e respeito. 

Agora, eu me senti ofendido ao ser objeto de proselitismo missionário —bem no centro de Toulouse, onde a religião já mostrou toda a boçalidade da qual é capaz.

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