Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Os jovens de hoje

Alguém imaginava que millennials e geração Z se apegariam a velharias?

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Primeiro, as definições, que são aproximativas.

Os millennials, também designados como geração Y, são os humanos que nasceram entre 1980 e 1995: eles entraram na vida adulta (seja lá o que isso for) depois de 2000.

Corrijo: as categorias como “millennials” não valem bem para “os humanos”: elas foram criadas para investigar gostos e comportamentos de consumidores e eleitores nos países ocidentais ou ocidentalizados. 

Ilustração onde vários coelhos usando fones de ouvido mexem em celulares, conectados por cabos coloridos.
Luciano Salles/Folhapress

Os millennials se dividem em dois grupos: os que foram crianças e adolescentes nos anos 1990 (em grande parte ainda sem internet) e os que foram crianças e adolescentes nos anos 2000.

Os dois grupos de millennials têm duas coisas em comum. Primeiro, eles sempre foram condenados por serem supostamente narcisistas, hedonistas e imediatistas (os três adjetivos são usados de maneira errada, mas tanto faz agora). Segundo, como assinalou a própria análise que os dividiu em dois (“The Millennial Divide”), todos eles cresceram tendo acesso à informação 24 horas por dia.

A geração Z é a que vem depois dos millenials: são os jovens que nasceram entre 1995 e o começo dos anos 2010. 

Calcula-se que millennials e geração Z, juntos (vamos chamá-los Y&Z), constituirão 37% do eleitorado em 2020, nas próximas presidenciais dos Estados Unidos. 

Agora, vamos ao que importa. Uma pesquisa da Axios acaba de revelar que essas duas gerações pensam de uma maneira um pouco diferente da de seus pais e avós.

Por exemplo, 73,2% das gerações Y&Z pensam que a saúde deveria ser um serviço público oferecido pelo Estado (só 66,7% dos outros eleitores pensa igual). Uma diferença parecida aparece quando a questão é o direito à educação pública gratuita.

Fatos mais relevantes: 49,6% de Y&Z declaram que prefeririam viver num país socialista (enquanto declaram o mesmo só 37,2% dos outros eleitores). 43,1% de Y&Z são a favor de abolir a agência de imigração e alfândega dos EUA (enquanto só 29,7% dos outros eleitores pensam o mesmo).

É possível que, no próprio debate eleitoral, “socialista” pare de ser um palavrão destinado a estigmatizar o adversário como um americano indigno ou traidor. Também é possível que o governo Trump prefira “proteger as fronteiras” dos EUA com políticas menos espetaculares do que a construção de um muro.

Graças ao deslocamento do eleitorado jovem, talvez o debate político do ano que vem, nos EUA, torne-se mais interessante.

Agora, o que está acontecendo com os millennials e a geração Z? Será que foram vítimas do “marxismo cultural” que tira o sono dos “pensadores” de nosso governo atual? É o caso de se preocupar com uma ressurreição da utopia socialista ou comunista e com uma nova Guerra Fria? Como funcionaria, aliás, visto que Putin é um amigão de Trump? Será que Trump estará com os russos, contra os jovens e novos socialistas?

Mas não é o caso de se preocupar: as vendas de Gramsci continuam acima de 200 mil, na ordem dos mais pedidos da Amazon americana; enquanto os livros de Ayn Rand, apóstola do individualismo, continuam firmes perto de 2.000. 

Os jovens americanos não estão se convertendo e não se tornaram marxistas.

Então, de onde vem o deslocamento das preferências dos millennials e da geração Z?

Pois bem, estamos sempre prontos a listar os desastres psíquicos e sociais que “inelutavelmente” se abaterão sobre “os jovens” por causa da tecnologia digital. Somos, em suma, facilmente apocalípticos quando se trata dos efeitos das redes sociais, dos aplicativos, da ubiquidade dos smartphones etc. 

Está na hora de considerar outros efeitos, dos quais pouco se fala. Você achava possível que duas gerações seguidas ouvissem podcasts e tags sobre qualquer tema, dialogassem em tempo real com o mundo inteiro, assistissem ao vivo aos tormentos de populações longínquas e escutassem seus pedidos desesperados de socorro, sem que nada disso tivesse efeito algum na maneira de essas gerações pensarem? 

Alguém imaginava, por exemplo, que nada disso produziria o sentimento de uma comunidade da espécie, de uma solidariedade humana básica? Alguém imaginava que as gerações do smartphone nunca constatariam que aqueles seres, lá, distribuídos pelos seis continentes, aqueles seres eventualmente pedindo ajuda são os semelhantes da gente? 

Alguém imaginava que os millennials e a geração Z se apegariam a velharias como passaporte, patriotismo e nação, enquanto eles estão, 24 horas por dia, conversando com o mundo inteiro?

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