Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Uma justiça útil

Recurso antes da prisão? Quantos forem necessários, mas num tempo limitado

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Difícil hoje decidir o que é de esquerda e o que é de direita. Tomemos o caso do desarmamento. À primeira vista, se você for de esquerda, espera-se que você seja a favor do desarmamento e, se você for de direita, que seja, então, a favor de deixar que a população se arme livremente ou quase.

Não é simples entender a razão dessa distinção entre supostas esquerda e direita em matéria de desarmamento. 

Talvez a esquerda tenda a proteger a vida dos assaltantes por acreditar que, em última instância, eles seriam frutos e vítimas de “injustiças sociais” que os tornaram criminosos. Então, reagindo, você atiraria em quem? No desgraçado que ameaça você ou no coitado que foi levado até aí  ela dureza da vida?

Ilustração de diagrama de arma desmontada
Luciano Salles/Folhapress

Talvez a “esquerda” também desconfie dos cidadãos, de sua capacidade de manejar armas de modo eficiente e de conter seus ímpetos com uma arma na mão (da raiva no trânsito ao ciúme).

Talvez a “direita” não queira nem saber das ditas durezas da vida e prefira responsabilizar cada um plenamente pelos seus atos. Você assalta? Pode ser morto. Talvez a “direita” também confie exageradamente no cidadão livre e responsável por sua própria proteção, sem precisar da tutela do Estado.

Seja qual for o tamanho da lista das razões a favor ou contra, nem sempre encontraremos, em defensores e opositores do desarmamento, traços que correspondam exatamente à divisão política entre esquerda e direita.

Na semana que acaba, reli “Dei Delitti e delle Pene” (“Dos Delitos e das Penas”, 1764, várias traduções disponíveis), talvez o livro mais importante produzido pelo iluminismo italiano. Em meados do século 18, alguns amigos, em Milão, reuniam-se regularmente: os irmãos Verri, Luigi Lambertenghi e Cesare Beccaria, que assinou o livro em questão (provavelmente concebido junto com Pietro Verri). O livro teve uma forte repercussão, e não só na Europa, contribuindo para o descrédito progressivo da pena de morte, por exemplo.

Pois bem, Beccaria, considerado um progressista, afirmava que as leis que proíbem as pessoas de andar armadas negam uma liberdade individual (a de se armar), a qual, como toda liberdade individual, deveria ser cara a quem acredita nas luzes da razão. E com qual consequência? Pois é, Beccaria defenderia andar armado para piorar a condição dos assaltantes e melhorar a dos assaltados.

Beccaria era de direita? Não sei, mas o livro foi apreciado pelos iluministas franceses (Voltaire, Diderot e cia.) e também por Thomas Jefferson, que se inspirou nele para incluir o direito de andar armado na declaração dos direitos da Constituição americana.

Claro, para Jefferson e os americanos, o direito de andar armado não existia para o cidadão se defender contra os criminosos, mas para ele se defender contra o Estado, ou seja, para ele preservar a capacidade concreta de se revoltar contra o poder constituído.

Mas por que fui reler a obra de Beccaria? Duas razões da atualidade do livro.

1) É um dos primeiros textos que propõem de maneira clara a distinção entre delitos e pecados —sem a qual, aliás, não existe uma sociedade laica. A liberdade moderna começa quando o que é pecado para uma religião oficial (ou qualquer outra) não por isso constitua um crime diante da lei. Corolário: nada se supõe que seja proibido por ser contrário a uma fé religiosa.

2) Queria encontrar alguma luz para me orientar no debate, em curso no Supremo Tribunal Federal, sobre a prisão (ou não) do réu condenado em segunda instância, mesmo se ainda houver possibilidade de ele recorrer da sentença.  O livro não diz nada a favor ou contra a questão examinada pelo STF. Mas Beccaria expõe uma lei geral, que é importante ouvir.

Segundo o teorema geral de Beccaria, qualquer pena, para ser útil, deve ser essencialmente pública (ou seja, não pode acontecer às escondidas), deve ser proporcional ao crime, ditada pela lei e pode ser a menor possível nas circunstâncias dadas. Por que pode ser a menor possível, aliás? Por que não seria a maior e mais cruel, ou seja, a que mais assustaria os criminosos?

Para Beccaria, não é a intensidade da pena (sua eventual crueldade) que pode ter um efeito de dissuasão, mas a dupla certeza de que 1) haverá pena e 2) ela será rápida.

Quer desencorajar o crime? É preciso que não haja impunidade e que a Justiça não demore. O resto, tanto faz. Recursos antes da prisão? Quantos forem necessários, mas num tempo bem limitado.

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