Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Contardo Calligaris

Cinquenta anos hoje

Os anarquistas pareciam ser os culpados ideais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Era 12 de dezembro 1969, fim de tarde, em Genebra. Eu pensava nas férias, que logo começariam e que eu passaria em família, em Milão.

Meu pai me ligou, de Milão, justamente, o que era raro. Ele me disse que uma bomba acabava de explodir no Banco Nacional da Agricultura, na Piazza Fontana. Havia mortos e feridos (16 e 88, respectivamente, saberíamos mais tarde).

Piazza Fontana, atrás do Duomo, era um lugar familiar para mim por causa das lojas de tecido Ghidoli, quase na frente do banco: na minha infância, os Ghidolis eram amigos de meus pais e eu amava perdidamente uma das irmãs (infelizmente, eu tinha dez anos, e ela, 20).

Ilustração de fusca vermeho, em fundo vermelho, com liquidificador azul no lugar do motor.
Luciano Salles/Folhapress

Enfim, quem faria aquilo? E por quê? Passaram-se mais de dez anos sem que a Justiça encontrasse alguma resposta na qual pudéssemos acreditar: dez anos de chumbo.

“Os anarquistas” pareciam ser os culpados ideais. Pietro Valpreda (dançarino, com cara de contracultura) e Giuseppe Pinelli (proletário ferroviário) foram presos. Valpreda foi linchado pela imprensa e levou anos para ser inocentado. Pinelli caiu (suicidou-se? foi jogado?) da janela do quarto andar, onde estava sendo interrogado.

Sobre a morte de Pinelli, Dario Fo (teatrólogo e hoje prêmio Nobel) escreveu a peça “Morte Acidental de um Anarquista” (1970), que era ótima, mas contribuiu a convencer a esquerda toda de que Pinelli tinha sido defenestrado pelo comissário Luigi Calabresi, que o interrogava.

E Calabresi foi assassinado por militantes da Lotta Continua, num atentado, em 1972 —muitos, na esquerda, pensaram que foi merecidamente. Em 2007, o filho de Luigi Calabresi, Mario (jornalista), publicou um livro lindo e triste sobre a mentira que matou seu pai (“Spingendo la Notte Piú in Lá”, empurrando a noite mais adiante, da editora Mondadori).

Confuso? É dizer pouco. Segundo a Justiça italiana, só entre 1969 e 1975, houve 4.584 atentados, com centenas de mortos e feridos —vítimas a esmo de um conflito que ninguém entendia qual fosse e de atos cuja finalidade última permanecia oculta. Muitos militantes de direita e esquerda foram identificados e condenados por executarem os atentados, mas nenhum mandante e financiador.

Nota: se o propósito era desestabilizar o Estado e a sociedade italiana, um mandante de direita podia financiar executores de esquerda, e o inverso.

É relativamente fácil imaginar qual fosse a intenção de quem inventou os anos de chumbo: “tamponar” os efeitos políticos e culturais de 1968 e 1969, impedindo ou atrasando a invenção de uma social-democracia “avançada”.

Os cidadãos quaisquer, entre tiros e bombas, eram vítimas de neofascistas de boteco que procuravam comprovar sua legitimidade cobrindo-se com o manto do obscurantismo religioso. Um conflito central daquela época foi ao redor da lei que permitiria o divórcio: a direita era contra, a esquerda, a favor —a lei foi aprovada pelos italianos em 1974.

Também os cidadãos foram vítimas de um número de coitados e perdidos, eternos “estudantes” à procura de um dogmatismo teórico fácil (à la Toni Negri) que os transformasse todos em Cesare Battistis.

Mas, atrás dos militantes de esquerda e direita, quem eram e o que queriam os mandantes dos anos de chumbo? A alternativa está entre 1) neofascistas querendo voltar atrás no tempo ou 2) um centro retrógrado e “igrejeiro”, decidido a não compartilhar os lucros do dito “milagre italiano”, dono do poder desde sempre, desejoso de aparecer como a única voz da razão entre uma esquerda e uma direita ambas malucas e assassinas.

Essa segunda teoria era a de Pier Paolo Pasolini, exposta no Corriere della Sera, no fim de 1974, num artigo que começava assim: “Eu sei quem são os culpados”. Meses depois, Pasolini foi trucidado na praia de Óstia —por um michê. Será?

É bom celebrar o aniversário de Piazza Fontana, hoje, no Brasil, porque a provocação é a ação política preferida por quem se propõe como solução e “salvação” autoritária contra uma suposta desordem.
Provocação, por exemplo, é invocar as manifestações no Chile para prometer um novo AI-5 aqui.

Mas, tudo bem. Por sorte nossa, no Brasil, a história tende a tomar ares de farsa. Em 1981, setores militares, insatisfeitos com a abertura democrática, foram plantar bombas no centro de convenções Riocentro. Uma bomba explodiu no colo do sargento que a transportava. De forma tragicômica, o SNI tentou culpar os subversivos de sempre, estes malditos comunistas…

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.