Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Por que parecemos preferir simplificações que enxergam o mundo em branco e preto?

Segundo meus pais, era possível e lógico ser antifascista sem ser comunista

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O MoMA, Museu de Arte Moderna de Nova York, tem uma dependência no Queens, o PS1 —poucos turistas, um ótimo café e boas exposições temáticas.

Estive lá três dias antes do assassinato de Qassim Suleimani e Abu Mehdi, em Bagdá, por um drone dos Estados Unidos. Queria ver a exposição “Theater of Operations: The Gulf Wars 1991-2011” (teatro de operações, as guerras do Golfo).

Lembremos. Houve, primeiro, a Guerra do Golfo, em 1991: uma coalizão (EUA, Kuait, Reino Unido, França, Egito e Arábia Saudita) liberou o território do Kuait, que tinha sido invadido pelo Iraque, mas sem depor o (espantoso) ditador iraquiano, Saddam Hussein.

A Guerra do Iraque propriamente dita foi em 2003: EUA e Reino Unido invadiram o país e depuseram Saddam Hussein, que foi julgado e executado pelo novo governo iraquiano. A “justificativa” da intervenção foram supostos vínculos de Saddam com os terroristas da Al Qaeda e a suposta produção, pelo Iraque, de armas de destruição em massa. Para Saddam, os EUA queriam controlar o petróleo do Oriente Médio. O fato é que as justificativas anglo-americanas se baseavam em informações forjadas.

Ilustração de duas cabeças de leão ligadas no mesmo corpo, cada uma está em uma estremidade do corpo longilíneo.
Luciano Salles/Folhapress

Durante a guerra de 1991, o sociólogo francês Jean Baudrillard escreveu alguns textos, reunidos sob o título “La Guerre du Golfe N’a Pas Eu Lieu”, a Guerra do Golfo não aconteceu.

Primeiro, ele constatava que é difícil dar sentido a um evento inacabado. De fato, a tal guerra no Golfo, se é que começou em 1991, não acabou até hoje. A derrota iraquiana em 2003 foi adubo para o Estado Islâmico (com a guerra para destruí-lo), deixou incerto o destino dos curdos e produziu uma luta de facções e Estados (próximos e longínquos, como EUA e Rússia), que está viva hoje.

O título dos textos de Baudrillard (reproduzidos no catálogo da exposição) está confirmado hoje, no embate entre Trump e o Irã, que também aconteceu mais na mídia do que na realidade. O Irã declara que vingou Qassim Suleimani matando 80 soldados americanos —o que importa é que os iranianos acreditem. Trump declara que nenhum soldado americano se feriu. E foi o fim (temporário) da escaramuça.

Na exposição do PS1, muitas obras apenas dizem que as guerras estão erradas porque as crianças podem morrer. Engraçado, as crianças são as que mais brincam de guerra (na faixa de Gaza, nos anos 1990, me lembro de ser acolhido por meninos erguendo seu Kalashnikov de madeira e gritando “kill Israeli, kill”). 

Em outras obras (não só iraquianas), ouve-se uma queixa nacionalista: Saddam era um bosta, mas era nosso bosta. O que os gringos tinham a ver com isso? Se eu caminho pelas ruas de São Paulo e vejo um refugiado qualquer batendo numa velhinha, não deveria reagir porque ele é estrangeiro? Ou porque eu sou estrangeiro?

Agradeço aos gringos (incluindo os brasileiros) pela intervenção na Europa, na Segunda Guerra Mundial.

Agradeço também pela intervenção (atrasada) na Sérvia para proteger os bósnios. E acho espantoso que os “estrangeiros” não tenham intervindo em Ruanda, no norte da Nigéria, no sul do Sudão, nos momentos
sanguinários das ditaduras latino-americanas etc.

Outro argumento implícito de muitos artistas era: tudo foi por causa do petróleo. Como diz o Evangelho (Mateus 4:4, Lucas 4:3, 4), não só de pão vive o homem: a razão cínica, que entende tudo em termos de interesses materiais, é ingênua, ela nunca enxerga as motivações menos óbvias —a começar, no caso, pelo enfrentamento (velho, de 1.400 anos) das duas grandes religiões missionárias, o islã e o cristianismo, ambas capazes e desejosas de guerras santas.  

Saí da exposição me perguntando: por que parecemos preferir simplificações que enxergam o mundo em branco e preto? Deveria ser possível dizer, por exemplo, que o Irã é expansionista e terrorista sem que isso signifique concordar com a política de Trump. 

Para onde foi nossa capacidade de fazer distinções?

Acho que a esquerda foi quem começou. Segundo meus pais, era possível e lógico ser antifascista sem ser comunista.

Essa inteligência sumiu com a geração deles. Quando voltará? Só sei que, para mim, militante de esquerda nos anos 1960, os liberais e os social-democratas eram todos “fascistas”.

Hoje, as direitas dão o troco: acham que só há um inimigo, o espectro comunista, que ronda pelo mundo, como se estivéssemos na época do manifesto de Marx.

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