Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

A história confirma: governante tosco sempre é seduzido pelo autoritarismo

Experiência de Campos Mello em guerras deve ser insuportável para quem quis ser soldado e acabou reformado sem ver combate

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O presidente tem vocação para piadista de boteco. Na frente do Alvorada, ele mantém um programa de auditório, em que tenta fazer rir uma turma que grita “mito, mito”. 

Nesses shows cômicos (para a tal turma), os objetos frequentes de escárnio e bullying são a imprensa e os/as repórteres, os quais preenchem o mesmo lugar dos judeus nas cervejarias de Munique nos anos 1920-30 ou dos negros nos pubs para brancos do Alabama nos anos 1950. À diferença de judeus e negros naqueles anos, a imprensa é obrigada a presenciar sua própria zombaria (cf. a ombudsman desta Folha).

As/os repórteres aguentam o desrespeito do presidente e a estupidez cúmplice da claque dele porque acreditam na função moral da imprensa: informar mesmo os que não querem ser informados. 

Num desses shows, o presidente quis desacreditar a investigação de Patrícia Campos Mello, repórter especial da Folha, sobre disparos ilegais de mensagens de Whatsapp nas últimas eleições. Ele suscitou o riso de sua claque com a ideia de que Campos Mello teria tentado seduzir uma testemunha para conseguir as informações que ela procurava. O que foi? Será que o presidente se sentiu visado pela investigação? Ou será que há mais alguma razão pela raiva presidencial?

Campos Mello testemunhou os maiores dramas das últimas décadas; escreveu do Afeganistão, da Síria, do Iraque, do Líbano e de Serra Leoa durante a epidemia de ebola, em 2015. Em “Lua de Mel em Kobane” (Cia das Letras), ela relata a história de um homem e uma mulher sírios que ela conheceu quando tentavam sobreviver à expansão do Estado Islâmico. 

Quatro pessoas segurando microfones com roupas de proteção biológica
Luciano Salles/Folhapress

A experiência de Campos Mello nas piores guerras do século deve ser insuportável para um jovem que quis ser soldado e acabou reformado sem nunca ver a sombra de um combate (salvo seus protestos por melhores salários). 

Por competência e caráter, a desproporção é assustadora: o presidente parece um defensor amador, numa pelada, desistindo da bola e tentando chutar a canela de um craque de primeira divisão.

Alguns dirão que não precisa procurar longe: o presidente é simplesmente grosso. Pode ser. Mas a grosseria tem significação e consequências. Explico.

Dou muita importância às boas maneiras —faca na mão direita e garfo na esquerda, esperar que as pessoas saiam do elevador antes de entrar etc. Crianças, no bonde, esperávamos que chegasse um idoso para ver qual de nós lhe ofereceria seu lugar mais prontamente.

Mas para o que servem as boas maneiras? Por que não comer com as mãos e arrotar livremente? Esse, aliás, era o clima rebelde no fim dos anos 1960, quando li “O Processo Civilizador”, de Norbert Elias (que é um dos 200 livros que é preciso ler na vida, Zahar). 

Elias quer entender como chegamos até à convivência social moderna, dita “civilizada”. Ele começa mostrando como elaboramos as boas maneiras, que mudaram, aos poucos, nosso comportamento. Por exemplo, paramos de limpar a boca ou assoar o nariz na manga do casaco do vizinho e inventamos guardanapo e lenço. As regras de etiqueta revelam que descobrimos que os outros existem, enxergamos a humanidade de nossos semelhantes.

Esse é o primeiro volume da obra de Elias. O segundo, menos lido, é sobre a formação do Estado moderno, que centraliza o monopólio da violência dita “legítima”.

Qual a conexão entre os dois volumes? As boas maneiras são um pressuposto básico do sonho libertário —que se possa viver no respeito do e ao outro sem nem sequer recorrer ao Estado para administrar a convivência. Inversamente, o Estado autoritário é inevitável numa sociedade de malcriados. A história confirma: governante tosco é sempre seduzido pelo autoritarismo, porque ele não enxerga os outros como seus semelhantes.

Bolsonaro deu nesses dias mais uma confirmação dessa leitura de Elias. As bananas, que ele fez diante das perguntas dos jornalistas, valem para todos nós, os governados que poderiam questioná-lo, e elas têm o mesmo sentido do “foda-se” que Augusto Heleno endereçou ao Congresso.

“República das bananas” adquire assim um novo sentido  —não designa apenas pequenos países da América Central com ditadores que entregam os frutos da monocultura local à exploração estrangeira.

Agora, república das bananas designa também o país onde quem governa faz bananas aos governados. 

O Brasil, apesar de sua economia diversificada e de seu tamanho, torna-se enfim uma república das bananas.

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