Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Pregar abstinência sexual é ato imoral

Concordo com Bolsonaro, deve ser possível transar sem engravidar ninguém

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“Os jovens de hoje são hedonistas, ou seja, só querem prazer e para já.”

Das páginas de jornais e revistas até ensaios sociológicos sisudos, “hedonista” se tornou um palavrão. Às vezes, aliás, a definição do hedonismo inclui sua condenação: por exemplo, ele seria a procura “excessiva” do prazer. “Excessiva”?

De fato, o hedonismo afirma que o prazer é o bem supremo da vida humana. Você discorda? Mas, se não for esse, qual deveria ser? O desprazer? O sofrimento? A renúncia? A frustração?

Talvez. Nossa cultura, além de tratar o prazer com desprezo, valoriza a capacidade de adiar as gratificações. Há uma série de pesquisas para documentar a “força de vontade” dos pimpolhos que não comem seu chocolate agora porque alguém lhes prometeu que, se eles esperarem, ganharão dois.

Ilustração de boca aberta com a língua para fora e uma abelha pousando nela
Luciano Salles/Folhapress

Pergunta: os que comem o chocolate sem esperar são impulsivos ou são desconfiados? Por não acreditarem na promessa que lhes foi feita, não serão eles os mais sábios? Chocolate já. Por que aquele que sabe esperar seria “melhor”?

O cristianismo implantou nas nossas mentes uma sólida representação de punições e recompensas na vida após a morte: quem renuncia ao prazer aqui e agora receberá muito mais, depois. Ao contrário, será punido para sempre quem cedeu aos impulsos e procurou o prazer já.

Com isso, renunciar aos prazeres se tornou meritório. É da renúncia que esperamos milagres: se não como mais chocolate, minha mãe vai se curar (pois alguém reconhecerá o mérito de meu sacrifício). 

Aqui um paradoxo: sem saber bem o que isso significaria, declamamos que queremos ser “felizes”, mas desprezamos os prazeres. Nosso pensamento moral é doente.

Nos últimos dias, uma incrível fileira de maluquices foi dita em defesa da abstinência sexual como maneira de evitar gravidez precoce. Detalhe: a moral não é a arte de proibir, isso está ao alcance de qualquer mentecapto animado por uma sanha missionária. A moral é a arte de ponderar e permitir tudo o que for possível. Nesse sentido, a proposta da ministra Damares é imoral.

Em outras palavras, se a gravidez precoce é indesejável, a questão não é como evitar que os adolescentes transem, mas como fazer que possam e saibam transar sem engravidar. Veja: educação sexual básica, recursos anticoncepcionais etc. 

Agora, se alguém acha que as e os adolescentes não têm cabeça para decidir se querem transar, vamos discutir a lei que situa a idade do consentimento sexual aos 14 anos (lei que é da era Vargas, dos anos 1940). 

E se alguém acha que, na adolescência ou não, nunca deveríamos transar sem a vontade de engravidar ou ao menos sem correr o risco de nos multiplicarmos, deixo que ele ou ela conversem com o presidente Bolsonaro, que, com toda razão, reverteu uma vasectomia para ter uma filha e, depois disso, voltou à vasectomia.

O desprezo pelo prazer começa a ser reconhecido como uma verdadeira patologia, sob o nome de hedonofobia, ou seja, medo do prazer. O sintoma é social e antigo.

O medo do prazer já se expressou pela mortificação da carne (jejuns ou açoite, você escolhe) que alguns “fiéis” se impunham para afastar a tentação do prazer. Mas, sobretudo, o medo do prazer se transforma em repressão. Não gosto de bloco (até porque nunca pego ninguém); em vez de me frustrar ficando em casa e invejando os outros, vou proibir os blocos. Ninguém pode se dar os prazeres que me apavoram!

Reprimir os outros constitui um alívio, diminui minha inveja e, de brinde, permite-me servir a uma causa “nobre”. Na adolescência, ninguém me tirava para dançar, agora vou impedir que os outros transem, e é uma causa nobre: proteger os jovens contra gravidez precoce.

Para aqueles que têm medo do prazer (e são uma maioria), os colegas terapeutas comportamentais têm sugestões interessantes.

Por exemplo, 1) faça uma lista das coisas e atividades que lhe dão prazer. Descubra assim que seus prazeres são diversos e refinados: a poesia de Billy Collins, o silêncio, uma média com pão quente, uma transa no carro, um romance para violino e orquestra… Somos uma espécie diferenciada justamente porque inventamos uma variedade incrível de coisas que nos dão prazer.

2) Nunca faça uma lista de suas obrigações do dia (do supermercado às contas) sem acrescentar duas ou três coisas da lista dos prazeres possíveis, e considere que esses itens são tão urgentes quanto os outros.

Bom Carnaval.

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