Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu Coronavírus

Como seremos 'depois' que passar o confinamento universal?

Alguns imaginam o fim das burrices patrióticas; outros, o nascimento de um novo funcionamento econômico e social

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Os esperançosos (viúvos ou não do sonho socialista ou comunista) dizem que sairemos desta numa versão “melhorada”. Quem sabe nossa igualdade diante do vírus nos transforme —seremos mais solidários e mais justos? E a descoberta de nossa vulnerabilidade nos tornará menos cobiçosos e consumistas? O planeta agradeceria.

Ilustração de homem fazendo o símbolo de "paz e amor" com uma mão e segurando uma caneca com a outra. Ele está com várias facas, felchas e ferramentas atravessando o corpo dele.
Luciano Salles/Folhapress

Alguns, mais ousados, imaginam o fim das burrices patrióticas; outros, o nascimento de um novo funcionamento econômico e social.

São visões de futuro ou são promessas, do tipo “se eu sair dessa, juro que serei uma criança modelo”? Não sei.

Mas eis duas coisas que, quanto a mim, mudarei.

Quando a vida e o trânsito paulistanos voltarem ao normal, nunca mais me irritarei quando, parado no trânsito, escutarei o incessante bi-bi-bi das buzinas dos motoqueiros que pedem passagem. É claro, continuarei pensando que a avenida Doutor Arnaldo têm três faixas (e não cinco —três para carros e mais duas para motos). Também continuarei imaginando vinganças impraticáveis quando um motoqueiro indignado (sei lá por quê) deslocar ou destroçar meu retrovisor. Mas, apesar disso tudo, engolirei em seco com um sorriso.

A razão é simples. Contraí um extraordinário débito de gratidão com o exército de entregadores que saem a campo a cada dia, de moto ou bici.

Proponho que à noite, antes do panelaço e depois do aplauso para o pessoal da saúde, haja também um aplauso para os centauros, que hoje são uma condição imprescindível para que funcione o distanciamento social.

Nota um. Os aplausos são legais. Legal também seria que os entregadores dispusessem dos equipamentos de proteção individual necessários —e que os usuários adotassem a opção de uma gorjeta maior do que a sugerida pelos aplicativos.

Nota dois. Todos os trabalhadores dos serviços essenciais deveriam receber, além do aplauso, do agradecimento e dos EPIs, o adicional de periculosidade sobre o salário. Que tal? Mas vamos à minha segunda mudança futura.

Quando cheguei ao Brasil, em 1985, a saudação nacional me surpreendeu —como assim “tudo bem”? Nas línguas que eu praticava até então, a gente pergunta como o outro está. A pergunta pode ser hipócrita ou genuína; de qualquer forma, a expressão consagrada nunca é uma antecipação hiper-otimista, segundo a qual “tudo” poderia estar “bem”.

Como psicoterapeuta, tento levar meus pacientes a escutar e levar a sério o que eles mesmos dizem, até quando se trata de fórmulas triviais. Durante anos, a cada paciente que me perguntasse “tudo bem?”, respondia “não sei” e acrescentava “me diga você” —o que nos levava, em regra, a falar de como de fato as coisas iam.

Hoje, aos pacientes ou aos amigos que me perguntam (online) “tudo bem?” respondo sem hesitar “não”.

Num primeiro momento, meu interlocutor se explica. Ele queria saber se estava tudo bem “comigo”, só isso… Mas basta ficar calado um momento para que qualquer um se dê conta —não existe um “tudo bem com a gente” se o resto todo está na pior.

O “tudo bem?” expressa uma espécie de atávica alucinação nacional, que nos torna vítimas designadas de qualquer vendedor de ilusões que venha nos dizer que o novo coronavírus é uma gripezinha ou uma marola —ou então que aqui tudo que você planta cresce, que brasileiro é imune porque tem a sorte de nadar no esgoto e que, de qualquer forma, somos alegres e de bom coração.

Disse que a alucinação é atávica porque o sintoma vem de longe. Na famosa carta que é o primeiro documento da literatura brasileira, Pero Vaz de Caminha conta ao rei, que está em Lisboa, que está tudo certo e vai ficar melhor ainda: um índio apontou para o colar de ouro do capitão e depois apontou para a praia —o que, segundo ele, só pode significar que na nova terra há muito ouro, que nem o do colar em questão. Talvez o índio quisesse dizer que ele gostaria de levar para casa o colar do capitão.

O otimismo de Vaz de Caminha queria, é claro, ganhar a simpatia interesseira do rei (Cabral encontrou um lugar cheio de ouro). Mas não acho que tenha ajudado a civilização brasileira.

É como se, desde então, não parássemos de tentar convencer a nós mesmos de que está tudo uma maravilha.

Não, não está tudo bem; está longe, muito longe disso. E deixar de mentir para nós mesmos talvez seja um passo necessário para ter vontade de arregaçar as mangas.

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